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O que resta de nós quando a música termina

O que resta de nós quando a música termina é o que fomos capazes de sentir enquanto ela tocava

David Bowie no clipe da canção Lazarus
Imagem: Divulgação

Há um instante invisível entre o fim de uma canção e o início do silêncio. Um segundo que parece suspenso no ar, como se o mundo inteiro parasse pra ouvir o eco do que acabou. É ali que a gente existe de verdade. Quando a voz do cantor se cala, o último acorde se desfaz e o corpo ainda vibra, tentando segurar o que não dá pra segurar. A música termina, mas alguma coisa dentro da gente continua tocando.



Nos anos 80 e 90, o som tinha corpo. As rádios eram templos, e cada fita cassete gravada era uma confissão. O ritual de apertar o play, esperar a faixa certa, rebobinar, tudo era um gesto de fé. Beatles e Stones ainda ensinavam que a juventude podia mudar o mundo. Legião Urbana, Titãs, Paralamas e Barão tocavam o caos brasileiro com poesia e raiva. Era um tempo analógico, e por isso mesmo mais humano. A canção não era só trilha, era testemunha.


Os anos 90 foram um grito. Nirvana rasgou o mundo ao meio, Radiohead transformou o colapso em arte, Oasis e Blur disputaram quem traduzia melhor o desencanto da geração Britpop, enquanto o Jesus and the Mary Chain misturava barulho, melancolia e microfonia como quem reza por dentro. Aqui no Brasil, a Legião já se transformava em mito, e o som das guitarras ainda era resistência. A MTV era o oráculo, o clipe era a nova bíblia, e a juventude acreditava que podia salvar o mundo com três acordes.


Depois vieram os anos 2000, e o rock reaprendeu a respirar com Strokes, Arctic Monkeys, Interpol, Franz Ferdinand. Havia algo de esperança no caos, uma vontade de reviver o espírito dos anos 90, mas com ironia. Era o tempo dos festivais, das revistas, do som saindo dos alto-falantes dos quartos, de uma juventude que ainda acreditava no poder de uma música bem escrita. Tudo pulsava, tudo parecia possível. A música ainda era o centro do mundo.


Mas o mundo mudou. O ritual virou consumo. A música virou fluxo. Hoje o som chega por algoritmo, não por destino. O play é infinito, mas o arrepio é raro. Perdemos o silêncio entre uma faixa e outra, o espaço onde a alma respirava. O digital nos deu tudo, mas roubou o mistério. A música virou pano de fundo para a pressa. Walter Benjamin já dizia: a aura da arte morre quando a experiência se torna reprodutível. E talvez seja isso — a gente vive cercado de som, mas com pouca escuta.



Ainda assim, quando uma canção certa toca no momento certo, o tempo para. Proust chamaria isso de lembrança involuntária, Nietzsche de vontade de potência, a psicologia de retorno afetivo. Eu chamo de sobrevivência. Porque a música ainda é o nosso modo mais puro de existir. A canção é o espelho onde a gente se reconhece e se perde. Ela fala de nós quando nem nós conseguimos.


O cinema entendeu isso. Alta Fidelidade nos mostrou que as músicas são capítulos da vida. Almost Famous traduziu a inocência perdida do rock. Control mostrou o peso do silêncio de Ian Curtis. Past Lives e Perfect Days transformaram o som em tempo, em memória, em poesia. Cada filme é um lado B da nossa própria trilha sonora. Porque a arte, no fim, é a tentativa de prolongar o instante que não volta.


E quando o show termina, quando a faixa acaba, resta o eco. Resta o que fomos enquanto durava. A música termina, mas deixa rastros, como cheiro no quarto depois que alguém parte. Ela se torna o que temos de mais íntimo, o vestígio do que fomos, o lembrete do que ainda podemos ser.


O que resta de nós quando a música termina é o que fomos capazes de sentir enquanto ela tocava. E talvez seja isso o milagre: o som se vai, mas o humano permanece.

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