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Automatic: o disco maldito, elétrico e à frente do seu tempo do Jesus and Mary Chain

Quando os irmãos Reid decidiram substituir a bateria por uma eletrônica, eles não estavam se rendendo. Eles estavam começando uma guerra

Jesus and Mary Chain
Imagem: Reprodução

Em 89, enquanto o mundo ainda tentava entender o que fazer com o fim dos anos 80, o Jesus and Mary Chain lançou Automatic. Um disco eletrônico, barulhento, melódico e completamente fora de lugar. E por isso mesmo, genial. Os puristas torceram o nariz. Os críticos especializados se dividiram. Mas quem ouviu de verdade, com o coração aberto e a alma pulsando, entendeu: esse não era um disco fácil. Era uma obra suja, moderna, mecânica e visceral. E, quem sabe, o grito digital dos anos analógicos.



Na real, Automatic foi um saco de pancadas na época. Mais áspero e direto do que Darklands, mas ainda sem a catarse suja de Psychocandy. Parte do estranhamento vinha da própria produção: embora Alan Moulder — que viraria lenda nos anos 90 — tenha conseguido esculpir um som denso, cheio de camadas, ainda assim o estúdio era um deserto emocional. Não tinha banda. Só os dois irmãos. Só "máquinas".


A bateria inteira? Programada. O baixo? Sintetizado. E aí entra o buraco: por mais que Bobby Gillespie não fosse nenhum virtuose na bateria, ele tinha alma, ele tinha swing, ele tinha personalidade. A pegada dele em Psychocandy era pura sujeira, puro instinto. E isso faz falta aqui. O resultado, às vezes, soa frio. Monótono. Artificial. Mas quando o disco acerta, acerta em cheio.


Logo na largada, “Here Comes Alice” já mostra ao que veio: melodia doce, guitarra cortante e uma batida seca, que parece um coração eletrônico falhando. Depois vem “Head On” — a música que Renato Russo eternizou no Acústico MTV da Legião Urbana. Um momento sagrado: voz e violão encarnando toda a melancolia elétrica dos irmãos Reid. Quando o Renato canta essa música, ele não tá só homenageando — ele tá traduzindo. É o espírito do Jesus and Mary Chain, nu e direto, na base da coragem.



A versão original? Um rompante de couro preto e fumaça. Uma homenagem direta à iconografia do rock’n’roll — pura potência e desdém. Dá até pra sentir o cheiro da jaqueta de couro. E quando Jim Reid solta “Makes you want to feel / Makes you want try / Makes you want blow the stars from the sky”, é como se estivesse detonando um altar inteiro com três versos.


Blues from a Gun” segue com guitarra cortante e vocais impacientes. É o Jesus com sangue nos olhos. Já “Her Way of Praying” carrega um sarcasmo ácido, quase violento. É um tapa na cara com distorção. Essas faixas, inclusive, talvez tenham soado ainda melhores ao vivo — quando a banda voltou pra estrada com músicos de apoio, sangue no palco, e barulho no talo.


Tem também pequenos momentos de brilho solitário: o feedback massivo que explode do nada em “Coast to Coast”, a melodia embriagada de “Halfway to Crazy”, que soa como se tivesse sido soprada direto do Sweet Jane do Velvet Underground, e o toque de cordas em “Drop”, que encerra o disco como uma epifania melancólica, breve e linda. Uma despedida que não avisa que tá indo embora.


Na época, Automatic foi rejeitado por muita gente. Porque era mecânico. Porque parecia frio. Porque não tinha a catarse de antes. Mas hoje, escutando de novo, fica claro: esse disco previa o futuro. Ele falava da artificialização da vida, da eletrônica entrando na alma, do colapso emocional embalado em caixas de som. E fazia tudo isso com melodia, com barulho, com sentimento.



Automatic não é o disco mais famoso do Jesus and Mary Chain. Mas é um dos mais importantes. Porque é aqui que eles se reinventam, que eles arriscam, que eles chutam o balde e dizem: a gente não vai repetir fórmula nenhuma. A gente vai soar como a gente se sente.



E o que eles sentiam ali era o vazio. A desconexão. A beleza fria da vida. E mesmo com o uso da eletrônica, de algum jeito, tudo isso soa profundamente humano.



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