top of page

Darklands: quando o Jesus and Mary Chain trocou a distorção pela escuridão

O segundo disco da banda escocesa é um hino à solidão, um grito abafado vindo do fundo de um quarto vazio, onde até o ar parece pesado demais pra se mover

Imagem: Divulgação
Imagem: Divulgação

Para muitos fãs aficionados daquela estética oitentista, ao mesmo tempo moderna e tão atual, Darklands vai muito além de um disco de canções pop daquelas que dançam na alma e sambam no coração. Isso tá mais para uma ressaca. Uma névoa. Ou até mesmo aquele filme preto e branco projetado numa parede de concreto às três da manhã. Se Psychocandy era o incêndio, Darklands é o que sobra depois: fumaça, cheiro de ferrugem, um céu que parece nunca mais clarear.



Mesmo já no fim do álbum, “About You” parece o verdadeiro ponto de partida emocional de tudo. Uma canção curta, melódica, nostálgica, conduzida com suavidade, como quem caminha descalço num chão frio. A voz agridoce paira no ar como um perfume antigo que insiste em não sumir — e talvez por isso "machuque" tanto. Não precisa explodir nem soar épica: ela apenas existe, ali, suspensa no tempo, sustentando o peso de tudo que veio antes. “About You” não encerra o disco — ela cicatriza.


Mas a verdade é que esse lado mais doce e melódico — essa escuridão embalada por canções que soam como ninar um coração despedaçado — já estava ali desde o começo. Escondido, talvez. Mas presente. Basta voltar para 1985 e ouvir “Just Like Honey”, faixa que abre Psychocandy. É ela quem já apontava, timidamente, o caminho por onde os Reid iriam caminhar. Era a beleza em meio ao caos. A calma antes do colapso. Como se dissesse: “calma, a gente também sabe escrever canções que doem devagar”.


O disco viu o mundo pela primeira vez lá em 87, e já lançou de cara a guinada dos irmãos Reid para dentro. Sai a microfonia, entra a penumbra. Não porque ficou mais suave — mas porque a dor agora vinha com mais precisão. A agressividade muda de forma: se antes era uma parede de ruído que te empurrava contra o chão, agora é uma faca fria entrando devagar, entre as costelas, sem aviso. E sem gritar.


Imagem: Reprodução
Imagem: Reprodução


Sentindo-se sufocados pelas constantes comparações com os Sex Pistols, e provavelmente já cansados das acusações de que as paredes de feedback eram apenas um truque sujo, os irmãos passaram por uma reformulação sutil. Darklands não foi uma ruptura — foi uma transição. E o resultado caiu num lugar incômodo, entre dois extremos: não tão caótico quanto Psychocandy, mas longe demais da superfície pra tocar nas rádios ensolaradas da época.


As músicas cresceram em duração, o disco encolheu em número. As guitarras se limparam. A sujeira virou sombra. A bateria explosiva de Bobby Gillespie foi trocada por programações eletrônicas — que, ao invés de enfraquecer, ajudaram a reforçar o novo foco: o vazio, o espaço entre os sons, o silêncio que pesa mais do que o próprio som.


O barulho deu lugar à ausência. E essa ausência tem nome, batida e voz.


“Darklands”, a faixa título, abre o disco com uma marcha lenta rumo ao nada. Um pedido de fuga: “I’m going to the darklands / To talk in rhyme”. Jim Reid canta como quem já desistiu do mundo e só quer sumir na própria sombra. A dor aqui não se debate mais — ela sussurra.


Na sequência, vem “Deep One Perfect Morning”, e logo depois a trinca que define o espírito do disco: Happy When It Rains, Nine Million Rainy Days e April Skies.


“Happy When It Rains” é puro sarcasmo emocional — a melodia gruda, mas o coração sangra. O contraste entre o instrumental doce e a tristeza resignada da letra entrega tudo: ser feliz quando chove é só outra forma de dizer que já se acostumou com o caos. Que é mais fácil aceitar a tempestade do que esperar pelo sol. Uma canção tão poderosa que anos depois o Garbage transformaria o título em hino próprio — como quem reconhece a herança emocional.


Em “April Skies”, o que parece esperança vira desilusão em looping. “Hey honey what you trying to say / As I stand here, don’t you walk away”. A canção traz um brilho, um ar de redenção que nunca se concretiza. Um gesto de amor num ambiente onde o amor já não funciona mais. A melodia sobe, mas a alma desce.



William Reid, que assume os vocais em alguns momentos, traz uma doçura sombria que contrasta com o tom mais seco de Jim. Sua voz aparece com destaque na imponente “Nine Million Rainy Days” — talvez o maior ponto de ruptura do disco. Um arrastar melódico devastador que culmina na frase que destrói tudo: "You' re gonna fall, you' re gonna fall down dead". “On the Wall” se arrasta como um fantasma — uma marcha interminável que soa como último suspiro antes da escuridão total.


Darklands é sobre andar sozinho no escuro. Sobre esperar por alguém que nunca volta. Sobre querer sumir — e não ter pra onde ir.


“Take me to the dark”, canta Jim lá no início. E ali ele fica: preso, afogado num mundo onde não há redenção — só repetição.



A essência da banda — as melodias inspiradas, o reverb saturado, a reverência ao plágio como forma de arte — ainda está ali. Mas tudo soa diferente. Menos pela forma e mais pelo conteúdo emocional. Ouça “Down on Me” e compare com qualquer faixa do Psychocandy — a estrutura pode até ser parecida, mas o impacto é outro. Agora, o que machuca é o espaço entre os acordes.


Darklands nunca tentou ser um Psychocandy. E talvez por isso ele funcione tão bem. Para muitos fãs, esse é o disco. O preferido. O mais real. O mais humano. O que mais machuca — porque é o mais próximo da gente.


Porque enquanto os outros gritavam para serem ouvidos, o Jesus and Mary Chain aprendeu a calar para ser sentido.


E a gente sente. Até hoje.


Darklands não é sobre o que foi dito. É sobre o que ficou no ar depois que tudo foi embora.



Comentários


bottom of page