Psychocandy: o amor em forma de ruído do Jesus and Mary Chain
- Marcello Almeida
- há 18 horas
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Em 1985, o Jesus and Mary Chain reinventou o ruído. Quase 40 anos depois, Psychocandy ainda soa como um grito moderno — sujo, belo e necessário

Eles cuspiram melodia com sangue na garganta!
Enquanto a indústria fonográfica lustrava capas e afinava vocais pra soar vendável, dois irmãos escoceses decidiram fazer exatamente o oposto: arrancar a pele da música e mostrar o osso. Psychocandy nasceu assim. Como um erro proposital. Como uma ferida aberta feita pra doer bonito.
Pra quem não tinha idade suficiente pra estar lá, é difícil imaginar o que eram os anos 80 no meio do furacão. Era um tempo estranho, entre estar vivo e apenas ouvir música. O mundo se curvava aos Smiths, ao U2, ao pós-punk se transformando em arena pop, enquanto a imprensa musical vasculhava cada canto do planeta em busca da próxima grande sensação do rock alternativo.
Foi nesse cenário que surgiram William e Jim Reid. Dois irmãos escoceses, de cabelos desgrenhados, com os bolsos vazios e as guitarras carregadas de ruído. Pegaram a doçura solar dos Beach Boys, o minimalismo niilista do Velvet Underground, colocaram dentro de uma garagem escura e explodiram tudo com microfonia. Nascia o Jesus and Mary Chain.
Mas antes da explosão, veio o primeiro passo — e ele foi dado no subsolo. Em 1984, o Jesus and Mary Chain lançou seu primeiro single, Upside Down, por uma gravadora independente ainda pequena, mas já barulhenta: a Creation Records. Fundada no ano anterior, em 1983, por Alan McGee, Dick Green e Joe Foster, a Creation se tornaria o epicentro da revolução alternativa britânica. Foi ali que nomes como Primal Scream, My Bloody Valentine, Teenage Fanclub e, mais tarde, o Oasis, encontraram voz. A Creation não era só uma gravadora — era uma faísca. Um grito em vinil.
Psychocandy foi lançado no ano seguinte, em novembro de 1985, no meio do caos criativo da década. E veio rasgando. Não era só um disco: era uma provocação. Uma parede de guitarras distorcidas, microfonia em volume assassino, letras entoadas como quem não faz questão de ser entendido. Os Reid não queriam soar agradáveis. Queriam soar verdadeiros. E naquele momento, a verdade era suja.
A beleza de Psychocandy é essa: o contraste entre ruído e doçura. O choque entre a agressividade do som e a ternura das melodias escondidas ali embaixo. Como um coração batendo sob os escombros.
E é justamente "Just Like Honey" que abre o disco. Uma canção belíssima, quase tímida, que derrete como saudade nos ouvidos. É uma música que parece andar para trás no tempo. A bateria minimalista, o vocal lânguido — tudo ali remete a uma inocência perdida, a uma beleza empoeirada. É o lado mais frágil do caos. E, por isso mesmo, o mais inesquecível.
Tão inesquecível que quase duas décadas depois, ela ressurgiu — e arrepiou o mundo todo de novo. Foi em 2003, no filme Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola, no último suspiro da história entre Scarlett Johansson e Bill Murray. Enquanto ele sussurra algo que nunca saberemos, e os dois seguem caminhos opostos em silêncio, Just Like Honey começa a tocar. Como se o som traduzisse tudo que não foi dito. Um fim agridoce embalado pela canção mais doce de um disco que veio do barulho.
Mas não se engane. Depois dela, o disco ataca. “The Living End”, “Never Understand”, “You Trip Me Up” — todas vêm como ondas de microfonia que engolem o ouvinte. Guitarras afinadas no desespero, feedbacks gritando como alarmes emocionais, vocais enterrados sob distorção. Um som que desafia a lógica da mixagem. Que transforma o “errado” em estética.
Na época, Psychocandy foi incompreendido. Parte da crítica odiou. O público não sabia o que fazer com aquilo. Mas o impacto foi imediato no subsolo. O disco virou um marco no cenário alternativo. Uma fagulha. Sem ele, não existiria shoegaze como conhecemos. Não existiriam My Bloody Valentine, Slowdive, Ride, Lush, Raveonettes. Até o rock dos anos 2000, de bandas como The Strokes ou BRMC, carrega os fragmentos desse ruído inaugural.
O Jesus and Mary Chain ensinou uma coisa simples e profunda: o barulho também sente. A distorção também ama. E a microfonia — quando bem usada — é uma forma de poesia.
Hoje, quase quatro décadas depois, Psychocandy ainda soa moderno. Ainda arrepia. Ainda provoca. Enquanto boa parte da música atual se esconde atrás de filtros e mixagens cirúrgicas, ele continua ali, cru, rasgado, honesto. É um disco que sangra, mas canta. Que machuca, mas cura.
E talvez seja por isso que Just Like Honey ainda embriague a gente. Porque ela lembra que no fim do caos, ainda existe beleza. Ainda existe ternura. Ainda existe alguma coisa parecida com amor.
Mesmo que coberta de ruído.
