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Uma fábula sobre The Wall: como ergueram um muro dentro de nós

Entre traumas herdados e silêncios impostos, uma fábula inspirada em The Wall revela o muro invisível que ainda cerca o Brasil

Imagem: Reprodução
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Disseram que era para proteger: dos perigos, dos excessos, das ideias. O mundo lá fora era sujo demais, complexo demais, vivo demais. Pensar, questionar, ter acesso à informação sempre foi um perigo — um absurdo — para essa gente. Então, vieram com a solução: muros. Não de tijolos visíveis, mas de doutrina, de medo, de contenção. Um muro por vez. Um silêncio por dia.



Ele nasceu dentro. Nunca viu o outro lado. Cresceu com a imagem do pai em preto e branco, afundada no fundo de uma gaveta que ninguém abria. O pai, mandado para uma guerra que nunca foi dele. A pátria exigia, obrigava e os corpos obedeciam. Herdou o vácuo. E quando quis saber mais, disseram que homem de verdade não pergunta e não questiona.


A mãe fez o resto. O amor dela vinha em braçadas, como se ele estivesse sempre prestes a afogar. Ela queria protegê-lo, mas seu medo era tanto que amar virou sufocar. “Você vai se machucar lá fora”, ela dizia. E assim, cada gesto de carinho era mais um tijolo no muro.


Na escola, ensinavam o necessário: submeter-se. Calar. Produzir. Os professores não educavam — treinavam. A sala de aula funcionava como uma abundante linha de montagem. Questionar era desvio, ato inaceitável. O sistema premiava quem se adaptava, e ele se adaptou tão bem que começou a esquecer que havia algo fora da cela.


Imagem: Reprodução
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Aos poucos, parou de sentir. Era mais fácil assim. Virou adulto como quem cumpre pena: sem memória afetiva, sem desejo, sem autonomia. Começou a ouvir um zumbido no fundo da mente. Algo que dizia: está tudo bem. Você está seguro. Confortável. Era mentira. Mas era uma mentira aceita por todos. E mentiras repetidas em massa começam a fazer parte da rotina e vai se tornando uma coisa natural e normal.



Até que um dia escutou. Não era bem uma música — era uma falha na transmissão. Um disco estranho, cheio de vozes distorcidas, frases que pareciam acusações. The Wall. Era como se alguém do outro lado do muro estivesse tentando avisar. Fragmentos do que foi enterrado voltavam em camadas: a ausência do pai, o afeto opressor da mãe, o adestramento disfarçado de ensino.


Cada faixa era uma chave. “Another Brick in the Wall” — ele entendeu: não era só sobre ele. Era sobre todos. “Mother” — percebeu que o zelo também era vigilância. “Comfortably Numb” — viu que a apatia não era uma falha, mas um efeito colateral do sistema. E então veio “Hey You”, um sussurro entre ruínas. Um chamado para quem ainda escuta, mesmo que em silêncio.



A ficha caiu: o muro era interno. O isolamento não era consequência. Era o objetivo. A sociedade havia se organizado para nos doutrinar e treinar nossa mente na contenção. Os afetos domesticados. Os corpos vigiados. Os sonhos negociados. O Brasil não superou a guerra — apenas a disfarçou. Não quebrou a ditadura — só a enterrou com outra farda. O muro virou cultura. E todos passaram a chamá-lo de normalidade.


Então veio o julgamento. Não do Estado. Do corpo. O tribunal montado na mente, onde cada voz do passado gritava. A mãe, o professor, o sistema, todos exigindo ordem, pureza, padrão. E ele — finalmente — disse não. “The Trial” não foi um julgamento público. Foi íntimo. Um levante interno. E a sentença foi clara: Tear down the wall.


Ele não fugiu. Ele quebrou. Tijolo por tijolo, palavra por palavra, memória por memória. Descobriu que liberdade não é sair do muro — é enxergar que ele nunca foi proteção. Foi controle. Foi herança. E que viver, amar, lembrar — tudo isso é perigoso num país que sobreviveu apagando o que sente.



O muro ainda está aqui. Não em pedra. Mas na nostalgia do autoritarismo, na saudade da obediência, no medo de pensar. Mas toda vez que o disco toca, uma rachadura se abre. E quando o muro cair, não será com estrondo. Será com uma pergunta. Será com um corpo que finalmente diz: eu não aceito mais funcionar.

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