Na era do cinismo, James Gunn aposta na pureza – e nos lembra por que o Superman ainda importa
- Marcello Almeida
- 27 de jul.
- 4 min de leitura
A promessa nunca foi de espetáculo, mas de esperança

Em 2025, quando o gênero de super-heróis parece dar seus últimos suspiros sob o peso das próprias fórmulas, Superman, de James Gunn, não chega como um reboot. Chega como um recomeço — não só do Universo DC, mas de uma ideia que a cultura pop há muito desaprendeu a cultivar: a da bondade como força.
Desde que o mundo viu Christopher Reeve voar pela primeira vez em 1978, o Superman se tornou mais do que um personagem: virou arquétipo, mito moderno, reflexo do que a América queria ser e do que o mundo esperava dela. Mas com o tempo, os tempos mudaram — e o herói se perdeu em versões que ora buscavam relevância sombria, ora tentavam reviver a leveza do passado sem coragem de abraçá-la de fato.
James Gunn, vindo da irreverência cósmica de Guardiões da Galáxia e da anarquia emotiva de O Esquadrão Suicida, sabe disso. Seu Superman não tenta reinventar a roda, nem desconstruir tudo de novo. Ele quer, acima de tudo, reencantar. E o faz com um raro equilíbrio entre reverência e reinvenção — sem vergonha de ser um filme de quadrinhos, mas com plena consciência do que significa lançar esse filme agora.
Clark antes de Kal-El

David Corenswet veste o uniforme com o frescor necessário para um personagem tão sobrecarregado de expectativas. Mas mais importante: ele interpreta Clark Kent. E é isso que define o tom do filme. Não estamos diante de um semideus sombrio ou de um símbolo de superioridade moral. Estamos diante de um homem — ainda que vindo de outro planeta — que tenta fazer o certo, tropeça, sofre, e continua tentando.
É um acerto de perspectiva que talvez pareça simples, mas que tem peso. Porque no mundo em que vivemos hoje — polarizado, cínico, apressado — acreditar na bondade virou quase um ato de resistência. Gunn parece saber disso, e constrói seu filme como quem planta uma semente: sem garantias, mas com fé no que pode florescer.
E como quem escreve com o ouvido, Gunn vai além da imagem: deu ao Superman e aos demais personagens trilhas sonoras que funcionam como espelhos da alma. Clark, por exemplo, tem seus dias embalados por canções como “Don’t Stop Believin’”, do Journey, “The Middle”, do Jimmy Eat World, “Shake It Out”, do Florence + The Machine. Músicas que revelam um homem em constante tentativa — não de ser o mais forte, mas de se manter íntegro em meio à ruína. Um coração deslocado que ainda acredita.
Lois Lane, por sua vez, é toda feita de vértices e faíscas. Sua playlist pulsa com vozes femininas fortes, letras afiadas e intensidade latente: Against Me!, BANKS, IDLES. Já Lex Luthor escancara sua megalomania elegante em uma seleção de ícones como David Bowie, Sparks e Prince — um homem que acredita que tudo pode ser controlado, até a própria narrativa.
Mais do que um detalhe promocional, as playlists criadas por Gunn em parceria com o Spotify funcionam como extensão narrativa. São como diários musicais. Cada faixa escolhida revela não só gostos, mas feridas, desejos, defesas. E nesse gesto — de humanizar até mesmo os vilões pelo som — o diretor mostra que, no fim das contas, Superman não é um filme de arquétipos. É um filme de pessoas.
Um mundo em colisão

Há ação, claro. Há tecnologia, criaturas, política, meta-humanos, conspirações e até espaço para um cachorro roubando a cena (e o coração do público). Mas o centro não está na pancadaria — está na crise de identidade de um mundo onde um homem que tenta impedir guerras é tratado como ameaça. Está no desconforto de ver a paz como algo suspeito. Está na pergunta que o filme deixa no ar: quando foi que começamos a desconfiar dos heróis?
Superman não tem medo de lidar com esse incômodo. Tampouco ignora o peso de ser o primeiro capítulo de um novo universo. Gunn planta várias pistas, apresenta novos rostos e insinua futuras conexões. Mas faz isso sem atropelar o presente. O foco está aqui — no agora — em fazer do Superman um personagem com alma.
A era da luz

Se os filmes de Zack Snyder viam o Superman como uma figura crística — solene, distante, quase trágica —, Gunn o vê com humanidade. Há espaço para humor, sim, mas sem transformar tudo em piada. Há crítica política, mas sem panfleto. E há emoção — não no sentimentalismo barato, mas naquela centelha que faz a gente lembrar por que um dia acreditou nesses heróis.
Superman talvez não agrade a todos. Alguns vão achar exagerado. Outros, insuficiente. E tudo bem. O filme não busca unanimidade. Busca coerência com sua proposta: devolver à cultura pop um herói que não precisa ser cool, sarcástico ou quebrado para ser interessante. Um herói que pode, sim, ser bom — e ainda assim complexo, contraditório e magnético.
Em um tempo em que a dúvida virou default, Superman escolhe a fé. Não no sentido religioso, mas na confiança de que ainda há espaço para figuras que não matam por vingança, não se escondem atrás de traumas, e não usam máscaras para fugir de si mesmos. Clark Kent olha para o mundo — e quer fazer parte dele. Mesmo quando o mundo não parece querer isso.
James Gunn não resgata o Superman. Ele devolve ele pra gente. Com tudo o que ele tem de falho, de estranho, de ingênuo — e, por isso mesmo, de necessário. Porque no fim das contas, o Superman não é só sobre voar. É sobre cair — e escolher levantar.

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