A poesia que escorre do horror em “O Bar Luva Dourada”
- Marcello Almeida
- há 1 dia
- 3 min de leitura
Nem toda escuridão é vazia. Às vezes, ela guarda uma estranha beleza entre os escombros

Há filmes que nos agradam. Outros, que nos desafiam. O Bar Luva Dourada, de Fatih Akin, pertence a uma categoria ainda mais incômoda: a dos filmes que nos corroem. Inspirado no livro de Heinz Strunk sobre o serial killer alemão Fritz Honka, o longa não busca entreter — ele esfrega no rosto do espectador um retrato cruel, visceral e, paradoxalmente, humano dos rejeitados do mundo. E ao fazer isso, encontra poesia nas ruínas.
Akin, premiado com o Globo de Ouro por Em Pedaços (2017), mergulha aqui em uma Hamburgo dos anos 1970 ainda mergulhada no trauma da guerra. O cenário é um país partido, uma cidade em decomposição moral. Nesse subsolo social vive Honka, interpretado com entrega brutal por Jonas Dassler — ator jovem que desaparece sob camadas de maquiagem, mas sobretudo sob o peso de uma performance que vai muito além do grotesco: há dor ali, há passado, há sombra.
A ambientação do filme é um espetáculo de decadência. O bar que dá nome ao título é uma espelunca real — e simbólica. Um lugar onde a humanidade vai se apagando em goles de álcool, corpos gastos e olhares perdidos. Prostitutas envelhecidas, homens solitários, figuras sem rumo. Ninguém está vivo ali — só sobrevive. E entre essas figuras, Honka se move como um espectro deformado pela infância violenta, pelo abandono e por demônios internos que o empurram ao abismo.

Fatih Akin filma tudo isso com crueza quase documental. Não há estilização da violência, nem glamour no horror. Mas há precisão. O que perturba em O Bar Luva Dourada não é apenas o que se vê — é o que se sente. O cheiro da podridão parece saltar da tela. A casa de Honka, um antro sujo onde ele esconde os corpos, não é apenas cenário: é extensão de sua mente deteriorada.
Mas o que torna o filme maior do que seu próprio horror é justamente o que Akin faz nos detalhes. Há momentos em que Honka parece hesitar, como se buscasse alguma conexão com o mundo. Em meio à barbárie, o cineasta insinua camadas de humanidade — sem jamais redimir ou justificar o monstro. E nisso reside a complexidade: Honka não é apenas um assassino. É um produto — e ao mesmo tempo um resíduo — de uma sociedade que varre seus fracassos para debaixo do tapete.
A atuação de Jonas Dassler é central para essa ambiguidade. Ele habita Honka por completo, numa entrega física e psicológica rara. É uma performance que merecia muito mais reconhecimento. Outro ponto de luz no filme é a personagem de Petra, vivida por Greta Sophie Schmidt — presença breve, mas suficiente para criar um contraste que grita. Em meio à feiúra absoluta, ela encarna uma beleza possível, ainda que fugidia. E essa beleza, por ser exceção, dói ainda mais.

Não à toa, o filme dividiu opiniões no Festival de Berlim, onde foi exibido em 2019. Akin, em entrevistas, disse que se sentiu inseguro em filmar a história. E talvez por isso mesmo tenha acertado: ele não romantiza nada. Apenas observa. Com olhos de quem conhece a vizinhança. Porque sim, Akin é de Hamburgo. Cresceu ouvindo histórias sobre Fritz Honka. E talvez por isso seu olhar não seja de fora — é um olhar que, apesar de horrorizado, ainda tenta entender.
O Bar Luva Dourada não é para qualquer público. Mas é, sem dúvida, um filme necessário. Porque há algo de poético no modo como revela os subterrâneos da alma humana. Porque lembra que, sob a superfície civilizada, há rachaduras. E nelas, às vezes, escorre sangue — mas também verdade.

⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️