Transa é Caetano rasgando a pele do Brasil com lirismo, saudade e liberdade, em pleno exílio
- Marcello Almeida
- 21 de jun.
- 3 min de leitura
Um trabalho cultuado na discografia do artista, que inovou ao apresentar uma sonoridade roqueira mesclada com música pop brasileira

É de Londres, mas sangra Bahia. É de 1972, mas continua dizendo tudo. É feito de saudade, suor e silêncio cortado. Transa não é só um disco — é uma revolução íntima em sete faixas. Um orgasmo lírico entre o exílio e o delírio. Um trabalho que contou com grandes nomes como: Gal Costa, Jards Macalé e Tutti Moreno nos arranjos. Isso ajudou na construção sonora do álbum que mescla grandiosamente a efervescência do rock britânico dos anos 60 e 70 com a Tropicália da cultura brasileira.
Caetano Veloso estava longe de casa. Longe do Brasil, longe da rua, longe da língua — mas nunca longe de si. E o que Transa revela é justamente isso: um artista no limite entre o corpo e o espírito, entre a pátria que expulsa e a alma que não desaprende a amar.
Gravado em Londres, no inverno duro do exílio, Transa não é frio — é puro calor interno. É um disco feito de sangue, saudade e alucinação. Um Brasil reinventado entre guitarras elétricas, berimbaus, percussão baiana, dub jamaicano, o inglês dos Beatles, a Bahia de Caymmi e a poesia barroca de Gregório de Matos. Tudo num só caldeirão de som, sentimento e sobrevivência.
É música como identidade. É resistência em forma de harmonia.
“You Don’t Know Me” já entrega tudo: a ruptura, a cicatriz, o olhar estrangeiro tentando decifrar a própria alma. A mistura de línguas não é um capricho estético — é sintoma de quem está dividido. Caetano está ali, mas não está. Canta daqui, mas pensa de lá. E no meio do caminho, deixa escapar aquela saudade que nos atravessa como um vento quente no rosto.
A faixa “Nine Out of Ten” é um grito híbrido e histórico. Foi nela que a palavra “reggae” apareceu pela primeira vez na música brasileira — e ironicamente, nem era reggae no sentido tradicional. Mas era Caetano, traduzindo em ritmo o que sentia nas calçadas cinzentas do bairro de Notting Hill: a ebulição cultural, a Londres pulsando black music, dub, soul, e o Brasil pulsando dentro dele.
E então vem “Triste Bahia” — e tudo explode. É uma faixa monumental, de dez minutos que parecem milênios de história condensados em ritmo, voz e verdade. Um samba de roda, um afoxé psicodélico, uma aula de ancestralidade embebida em dor e beleza. Gregório de Matos fala pelo Caetano, o barroco encontra o tropicalismo, a Bahia se agiganta e vira universo. “Triste Bahia” não é canção. É possessão.
“Mora na Filosofia” ganha novo corpo, nova carne. Caetano a canta como quem pergunta ao mundo se é possível existir entre o prazer e o sofrimento. E “It’s a Long Way” é como um suspiro final, um abraço apertado em tudo aquilo que ficou pra trás — mas que nunca foi embora de dentro.
Transa não é um disco político no sentido panfletário. Mas é profundamente político porque é pessoal. Porque é ferida exposta, é exílio sem maquiagem, é a arte como grito. É o som de um homem que canta para se manter inteiro — ou ao menos para não se perder de vez.
Cinco décadas depois, Transa continua sendo um disco urgente. Atemporal. Irreproduzível. Feito do encontro entre o abismo e a beleza. E talvez seja isso o Brasil: uma transa infinita entre o caos e a criação.

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