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Os Mutantes (1968) — o disco que abriu a mente, o peito e a possibilidade de existir de outro jeito

Um ritual psicodélico de liberdade, ironia e invenção que segue vivo em cada faísca da cultura pop

Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias formavam Os Mutantes (Foto: Divulgação)
Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias formavam Os Mutantes (Foto: Divulgação)

A explosão que fez o Brasil ver estrelas.


Tem discos que não são apenas discos. São portais. Erupções. Alquimias impossíveis. O primeiro álbum d’Os Mutantes é um desses casos raros de beleza sem manual, de invenção sem limite, de revolução disfarçada de festa. É como se um raio psicodélico tivesse caído sobre a Tropicália e explodido tudo em mil pedaços de cor, ruído, delírio, ironia e esperança.



Lançado em 1968, esse disco não veio para tocar no rádio — ele veio para desentortar a alma. Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias abriram caminho com uma audácia quase ingênua, quase profética, quase punk, quase mágica. Misturaram tudo o que o Brasil tentava esconder com tudo o que o mundo estava tentando descobrir. Beatles, Jorge Ben, baião, Jimi Hendrix, candomblé, Moog, ditadura, poesia, carnaval, LSD, televisão, Paris, São Paulo. Tudo.


Era uma época de medo. De censura, porrada e silêncio. Mas também era uma época de grito. E esse disco é um grito vestido de deboche e eletricidade. Ouve “Panis Et Circenses” e me diz se não parece uma marcha para o abismo cantada com flores na mão. É como se eles dissessem: olha que absurdo isso tudo, olha que tragicômico o nosso Brasil — e mesmo assim, vamos cantar.


A cada faixa, o disco se reinventa. “A Minha Menina” gira como um mantra lisérgico, um Jorge Ben que foi abduzido por alienígenas vestidos de paetê. “Baby”, do Caetano, ganha timbres que parecem voar, derreter, se teletransportar. E “Bat Macumba” é feitiçaria pura — batuque, transe, distorção, um transe ancestral com os pés na lama e a cabeça no cosmos. Já “Le Premier Bonheur du Jour” é um respiro francês que beija o rádio de válvula da vovó com perfume de contracultura.



Mas o mais bonito de tudo é como essas canções continuam dizendo o que a gente ainda não aprendeu a ouvir. O disco tem cinquenta e sete anos e continua mais atual que muita banda que saiu ontem. Os Mutantes falam de alienação, de fascismo disfarçado, de querer mais do que só existir e morrer. Eles cantam como se estivessem piscando pra gente no meio da tempestade: “ei, acorda. ainda dá tempo.”



É um disco que você não ouve — ele te toma. Te puxa pelo colarinho, te joga no sofá, acende uma luz azul na sala, dança com você, ri da sua cara, beija tua testa e desaparece numa nuvem de fumaça. Quando acaba, você fica ali, meio zonzo, meio apaixonado, meio “o que foi isso que acabou de acontecer?”.


Kurt Cobain sabia. Quando descobriu os Mutantes, ficou embasbacado. Como pode uma banda brasileira dos anos 60 soar tão à frente, tão maluca, tão livre? É porque os Mutantes não pertencem ao tempo. Eles são atemporais por natureza. Um milagre elétrico que nasceu num país tentando respirar.


A genialidade está no detalhe: os ruídos, os estalos, os cortes bruscos, as viradas de andamento, as falhas propositais que soam como chutes na bunda da lógica musical. É um disco que não respeita nada porque já transcendeu tudo. Como se os Beatles tivessem nascido em São Paulo e fossem criados com guaraná, feijoada e desobediência.


E no fim, quando você pensa que entendeu a viagem, vem “Ave Gengis Khan” cuspindo insanidade carnavalesca e chutando qualquer tentativa de explicação. Porque tentar entender Os Mutantes é como tentar desenhar um sonho com régua e compasso. Não dá. É pra sentir. É pra surtar. É pra rir, dançar, gritar, pirar, amar — tudo ao mesmo tempo. Esse disco não envelhece porque nunca foi daqui. Ele não é passado. É um ponto fora do tempo, um buraco de minhoca tropical onde o Brasil se olhou no espelho e viu que podia ser tudo. Psicodélico e político. Pop e sujo. Inocente e incendiário. Tupi or not to be.



Esse disco não é só uma estreia. É uma libertação. É um aviso. É uma aula de como ser brasileiro sem pedir desculpas. De como misturar sem perder a essência. De como criar algo realmente novo. Eles não seguiram nenhuma fórmula. Eles criaram uma.


E a gente, até hoje, vive na galáxia que eles inventaram.

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