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Legião Urbana: o abismo, o luto e a beleza de V

Tem discos que são confessionários. Outros, epitáfios. V é os dois

Imagem: Reprodução
Imagem: Reprodução

O quinto álbum da Legião Urbana não se escuta impunemente. Ele atravessa. Rasga. Lateja. Parece ter sido composto dentro de um quarto escuro, com a alma inflamada de silêncio e o corpo suando febre. Lançado em 1991, quando o Brasil agonizava no congelamento do Plano Collor e o rock nacional se engalfinhava pra não perder o fôlego, V chegou como um exorcismo — uma tentativa desesperada de manter a lucidez em meio ao caos interno e externo. Uma busca pela salvação que talvez nem existisse mais.



Renato Russo já sabia. Já sentia. O diagnóstico de HIV ecoava como um sussurro ácido em seus ossos. Não havia mais tempo pra ensaios, pra meias palavras. Cada verso virou grito. Cada arranjo, reza. V é o grito sufocado de quem sabe que a areia da ampulheta está caindo e resolve fazer arte com ela. Um disco que não quer agradar, mas confessar. Um álbum que não pede desculpas — apenas se despe.


Você escuta Love Song e já percebe: esse não é o mesmo Renato. A voz vem soturna, gasta, quase litúrgica. Como se a música tivesse sido escrita com sangue seco. Depois vem Metal Contra as Nuvens — talvez o épico mais brutal do rock brasileiro — uma jornada de onze minutos que alterna sopro e tempestade, ternura e faca, fé e cansaço. A música é uma peregrinação espiritual pelo desespero humano, um rock progressivo temperado com angústia barroca e dor moderna. “Não sou escravo de ninguém”, ele canta, mas há correntes em cada sílaba.


A Ordem dos Templários, A Montanha Mágica. Tudo em V soa como uma despedida cifrada. Os sintetizadores criam um clima de missa negra, onde guitarras soam como clamor por misericórdia. Renato recita, sussurra, desaba. Parece o Ian Curtis rezando em latim. Parece Camus escrevendo uma canção. Parece um homem perdido pedindo colo ao universo.


Mas é em O Teatro dos Vampiros que o disco rasga a carne do país. É a revolta contra um Brasil sem alma, onde a esperança foi leiloada e a juventude virou espectadora de um espetáculo grotesco. “Vamos sair, mas não temos mais dinheiro”. E a frase reverbera até hoje, 34 anos depois, como uma cicatriz que o tempo não apaga. Não é só uma crítica: é uma denúncia existencial. É sobre não ter pra onde correr quando o mundo ao redor virou ruína.



E então Vento no Litoral… ah, Vento no Litoral. A mais bela carta de despedida da Legião Urbana. Uma elegia em forma de canção. Uma música que flutua entre o céu e a praia, entre o ontem e o nunca mais. Você escuta e sente falta de coisas que nem viveu. A canção não termina — ela evapora.



V não foi feito para o rádio. Não foi feito para agradar gravadoras. Foi feito pra quem saber sentir. Pra quem já teve medo de morrer. Pra quem olha pro espelho e não se reconhece mais. Pra quem sabe que o amor salva, mas às vezes chega tarde demais. O disco é como uma carta engavetada, escrita por um homem em ruínas, que ainda insiste em dizer: “estou aqui”. E mesmo com 700 mil cópias vendidas, mesmo com o Brasil pegando fogo e a música virando produto, o que importa em V não é o sucesso — é a verdade.



É a dor transformada em beleza. É o fim encarado com dignidade. É a alma gritando num mundo que só faz silêncio.

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