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O mundo desabava em 1989, mas a Legião Urbana florescia com As Quatro Estações

"Parece cocaína, mas é só tristeza"

Legião Urbana
Imagem: Reprodução

Na Alemanha, caía o Muro. No Brasil, a máscara. No mundo inteiro, o século XX parecia ruir de dentro pra fora. O império socialista desmanchava no ar, o capitalismo latejava em neon, e a juventude do planeta ardia em desespero, em dúvida, em desejo. Aqui, num país tão cansado de si mesmo, a Legião Urbana lançava As Quatro Estações — e o impossível acontecia: a esperança voltava a ser cantada.



Depois do caos punk de Que País É Este, Renato, Dado e Bonfá – agora um trio, mas mais inteiros do que nunca – voltaram com um disco que é quase um abraço na tempestade. Um disco feito de tristeza doce, beleza em ruínas, lucidez dolorida. É o álbum que mostra a Legião olhando para dentro, sem perder o mundo de vista. Camões, Buda, Cazuza, Mapplethorpe, Brasília, a infância, a culpa, o amor, o medo – tudo cabe aqui, tudo arde junto. Como o próprio Renato dizia: “É fogo que arde sem se ver”.


As Quatro Estações é o disco onde a dor vira poesia sem precisar gritar. Onde a saudade se deita com a fé, e o caos aprende a dançar. Se Dois é o mergulho e Que País É Este é o soco, As Quatro Estações é o voo. Mesmo que seja um voo sobre os escombros.


“Parece cocaína, mas é só tristeza” – o disco abre assim, com essa sentença-bomba que hoje poderia estar na capa de qualquer jornal. “Há Tempos” é o lamento de uma geração que já viu demais, já perdeu demais, mas ainda insiste em buscar o milagre de viver. A Legião canta como quem reza. A Legião toca como quem sangra bonito.


E aí vem “Pais e Filhos”. Talvez a mais universal, a mais necessária, a mais devastadora canção que a Legião Urbana escreveu. É o tipo de música que salva e machuca ao mesmo tempo. “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã” não é mais um verso. É um testamento. Uma oração civil. Um lembrete de que viver é urgente demais pra ser desperdiçado com ódio ou silêncio.



A leveza agridoce do disco esconde suas cicatrizes. Renato fala de AIDS, de sexualidade, de solidão, de fé e de culpa com a coragem de quem já não tem nada a perder – e por isso mesmo pode tudo. Em “Meninos e Meninas” e “Maurício”, ele se assume por inteiro, vulnerável, bissexual, lírico, humano. E transforma a confissão em canção. A ferida em beleza. A verdade em arte.


Legião Urbana
Imagem: Reprodução

“Monte Castelo” é o ápice da fusão entre o espiritual e o terreno, entre a literatura clássica e a angústia moderna. Um Frankenstein de fé, um monumento ao amor e à ausência. Renato costura São Paulo e Camões como quem borda um último bilhete antes do fim do mundo.


E se As Quatro Estações é uma carta aberta, “Feedback Song For A Dying Friend” é o bilhete que Renato nunca conseguiu entregar. Uma elegia em inglês para Robert Mapplethorpe, mas também um suspiro para Cazuza. É como se ele estivesse tentando traduzir a morte em sons – e falhasse lindamente.


O disco tem uma serenidade nova. Uma doçura ácida. A Legião já não está mais interessada em apontar dedos – prefere apontar caminhos. Mesmo que sejam tortos. Mesmo que acabem em becos sem saída. É um disco sobre aceitar. Sobre transformar as dores em degraus. Sobre amar mesmo sabendo que não vai durar. Sobre dizer: “Sonhos vêm, sonhos vão, o resto é imperfeito”.


As Quatro Estações é o som de um Brasil que queria crescer mas não sabia como. É o disco do menino que não queria mais apanhar no colégio. Do adolescente que chorava no quarto sem saber por quê. Da mãe que esperava o filho voltar. Do cara que perdeu tudo e mesmo assim insiste em olhar o céu.



É um álbum que não envelhece porque fala daquilo que nunca muda: o medo, o amor, o tempo, o adeus. E talvez seja isso. O segredo da Legião Urbana nunca foi a resposta. Foi sempre a pergunta. A dúvida. O silêncio depois do grito.



Talvez seja isso o que Renato queria dizer quando sussurrou:


“Quando se aprende a amar, o mundo passa a ser seu.”

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