Legião Urbana — Dois (1986): um disco para quem já se decepcionou com tudo
- Marcello Almeida
- 5 de jun.
- 3 min de leitura
“E é só você que tem a cura pro meu vício de insistir..."

O segundo disco pode ser um pesadelo na vida de uma banda. O famoso “síndrome do segundo álbum” não é papo de jornalista chato — é real, é carne viva. É o abismo entre o anonimato e o sucesso, o momento em que a banda tem que decidir: vamos virar mito ou vamos ser só uma lembrança simpática dos anos 80?
A Legião Urbana não só atravessou esse abismo como cravou os dois pés no chão do outro lado. Dois é a transição perfeita da urgência juvenil para a maturidade torta, suada e emocionalmente devastada. É o disco de quem deixou de ser adolescente há cinco minutos e já está de ressaca da vida adulta. Um trabalho que abandona o grito punk do primeiro disco pra se afundar num lirismo melancólico, de beleza perigosa, quase insuportável. É poesia com hematoma, romance com pulsação irregular, esperança com gosto de fim.
Julho de 1986. O Brasil vive o teatro do otimismo. Sarney é presidente, o Plano Cruzado congela preços como quem tenta segurar vento com as mãos, fiscais invadem mercados como se fossem heróis, e o país se engana bonito achando que vai dar certo. Em meio a essa euforia sintética, a Legião entrega um disco que não quer animar ninguém. Quer mostrar o que realmente se passa atrás das cortinas: dúvidas, angústias, amores errados, confissões sussurradas no escuro. O país acreditava em mágica, a Legião vinha lembrar que o truque sempre tem um truque.
A primeira faixa, “Daniel na Cova dos Leões”, já avisa ao que veio. Uma letra enigmática, romântica, de ciúme e possessividade quase bíblica. Renato canta como quem reza num quarto sem janelas. “Teu corpo é meu espelho e em ti navego” — e tudo já está dito. O disco inteiro é sobre isso: navegação em mares que não levam a lugar nenhum.
A sequência é brutal: “Quase Sem Querer”, uma das músicas mais emocionantes da história do rock brasileiro. Tudo ali é sobre o fim — não só de um relacionamento, mas de uma ilusão, de uma versão de si mesmo. Uma carta de amor e desencanto, escrita com mãos trêmulas. Mas aí vem “Eduardo e Mônica”, a exceção solar do disco, a crônica da juventude possível, do casal improvável que deu certo (ou quase). Uma espécie de fábula pop, com alma de novela e poesia de bar. A gente sabe de cor. A gente sorri. E depois volta a chorar.

A viagem segue com “Acrilic On Canvas”, onde Renato experimenta o inglês como quem experimenta um quarto desconhecido. A voz grave, a melodia minimalista — tudo cheira a The Cure, a Joy Division, a um vazio bonito que ecoa longe. A Legião nunca soou tão estrangeira. Nunca soou tão próxima.
E então vem o hino dos hinos: “Tempo Perdido”. O tipo de música que parece que sempre existiu. Uma daquelas faixas que todo mundo canta como se tivesse escrito. “Todos os dias quando acordo / não tenho mais o tempo que passou / mas tenho muito tempo / temos todo o tempo do mundo” — versos que viraram tatuagem, camiseta, grito coletivo. Um testamento de juventude. Uma carta para o futuro escrita por quem já sabia que não ia chegar lá inteiro.
O disco ainda passeia por experimentações como “Música Urbana 2”, deságua no único blues do álbum, aliás, um dos pouquíssimos da trajetória da Legião. “Andrea Doria”, “Central do Brasil”, “Metrópole” e “Plantas Embaixo do Aquário” formam um núcleo que mistura desencanto social, crises existenciais e uma tentativa de compreender o país, o outro, a si mesmo.
E então, o final apoteótico: “Índios”. A canção que talvez melhor represente o que é ser brasileiro, jovem e desiludido. Um lamento sofisticado, uma oração invertida. “E é só você que tem a cura pro meu vício de insistir / nessa saudade que eu sinto / de tudo que eu ainda não vi.” A interpretação de Renato aqui é uma aula de emoção crua. Não é técnica — é entrega. É alma aberta.
Dois não é um disco de refrões fáceis. É um álbum para ser ouvido sozinho, no escuro, com os olhos fechados e o peito aberto. É o som de uma banda que decidiu se levar a sério demais — e, por isso mesmo, virou eterna. Enquanto outras bandas dos anos 80 dançavam com o pop, a Legião decidiu dançar com seus próprios fantasmas. E dançou bonito.
Se o primeiro disco era sobre juventude gritando por mudança, Dois é sobre o que acontece quando a mudança chega — e não é bem o que você esperava. É sobre o amor que machuca, a esperança que decepciona, o país que finge ser outro.
É sobre a vida real. Aquela que não aparece na propaganda.
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