Legião Urbana — Que País É Este (1987): “Quando as estrelas começarem a cair…”
- Marcello Almeida
- 6 de jun.
- 3 min de leitura
"Como é que você se sente?"

Chegamos a 1987. Mas não com festa. Chegamos cambaleando, machucados, confusos — e foi nesse país esfacelado que a Legião Urbana ergueu seu terceiro disco como quem levanta um cartaz de protesto em chamas. Que País É Este não é só um título: é uma pergunta, uma facada, um espelho rachado onde o Brasil se encara e não gosta do que vê. A banda vinha de dois álbuns viscerais, intensos — mas aqui, o sangue escorre mais espesso. É o momento em que a melancolia dos sonhos vira raiva pura.
Esse disco é um animal selvagem encurralado. Nove faixas que gritam o desencanto de uma juventude afogada em promessas não cumpridas. Se Dois era poesia sob a neblina, Que País É Este é um incêndio. Um retorno ao espírito cru e espancado do punk que formou Renato Russo nos tempos do Aborto Elétrico. E mesmo que a maioria das canções venha daquela era, o disco soa como se tivesse sido gravado ontem. E amanhã. E daqui dez anos. Porque o Brasil insiste em não mudar.
A faixa-título é uma explosão. Uma música que nasceu em 1978 e continua atual como um tweet de revolta. “Nas favelas, no senado / sujeira pra todo lado” — não é só verso, é constatação. É tapa na cara. E o pior: ainda vale. O que deveria ter sido denúncia virou rotina. Aquilo que era grito virou mantra. Quando Renato pergunta “que país é este?”, ele já sabe a resposta — e a gente também.
Renato estava no limite. Temperamental, esgotado, brilhante. A fama o consumia por dentro. “A gente ganhou tudo, mas não tinha estrutura pra segurar”, ele disse. E isso transborda no disco inteiro. A Legião grava com pressa, com tensão. Era pra dar errado. E deu certo demais. Um milhão de cópias em meses. Disco de Diamante. E um lugar definitivo na história.
“Conexão Amazônica” é ironia elétrica. Uma viagem no caos, um retrato da solidão química de uma juventude perdida. “Tédio (com um T bem grande pra você)” despeja desprezo com riff e sarcasmo, como se cuspisse na cara da pasmaceira nacional. “Química” é um porrete punk contra o vestibular e a caretice institucional. É uma porrada de dois minutos contra a domesticação do pensamento.
Mas Que País É Este também tem seus silêncios. Seus fantasmas. “Angra dos Reis” é a pausa pós-apocalíptica. Um piano que caminha pela beira do mundo. “Me diz: pra onde a gente vai fugir?” — e a resposta não vem. Porque não tem pra onde. E “Eu Sei” é a canção do desencanto amoroso mais íntimo, um afago triste em meio à pancadaria. Um Renato nu, cansado, quase resignado: “Sexo verbal não faz meu estilo.”
E aí vem o épico. A lenda. A crônica de João de Santo Cristo em “Faroeste Caboclo”. Nove minutos de Brasil. Sem refrão, sem repetição. Uma bíblia marginal com sotaque candango. Uma história que virou filme, virou símbolo, virou espelho. A comparação com Dylan é inevitável, mas injusta — porque isso aqui é outra coisa. É Brasil bruto. É narrativa de trincheira.
No mesmo ano, Cazuza também soltava suas bombas líricas com “Ideologia” e “Brasil”. Dois jovens furiosos, brilhantes, desiludidos. Dois poetas com AIDS, com vícios, com tudo à flor da pele. Dois espelhos partidos da mesma geração. E enquanto Cazuza morria aos 32, Renato resistia mais um pouco, até 1996. Mas já carregava o peso de um país nas costas.
Sim, o disco é uma colcha de retalhos. Sim, é feito de sobras, de canções velhas, de urgência. Mas é essa falta de unidade que dá identidade. É como o Brasil — um amontoado de contradições que funciona pela força do grito. Que País É Este é bagunçado, intenso, urgente. E eterno. Porque o país que Renato denunciou em 1987 ainda é o nosso. O mesmo. O que te obriga a fugir e não te dá pra onde. O que fede a corrupção e a impunidade, mas ainda canta o hino de olhos fechados. Um país onde “todos acreditam no futuro da nação”, mas ninguém consegue dormir.
E talvez por isso esse disco nunca tenha soado tão necessário. Ele não é só sobre 87. É sobre agora. E sobre o que a gente vai continuar engolindo até que a próxima Legião apareça — ou até que a gente finalmente exploda.
Um álbum que abriu portas para um novo processo criativo de composições que resultaria no que muitos consideram o melhor momento da banda, 'As Quatro Estações' de 1989.
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