top of page

The Doors – L.A. Woman: o blues da despedida e o espelho rachado da América

A última confissão de Jim Morrison ainda pulsa como um trovão em meio à febre da Califórnia

Imagem: Reprodução
Imagem: Reprodução

Poucos discos traduzem com tanta precisão o crepúsculo de uma banda quanto L.A. Woman (1971), o sexto e último registro do The Doors com Jim Morrison ainda vivo. Gravado entre caos, excessos e uma estranha lucidez poética, o álbum é uma espécie de testamento espiritual, um mergulho nas sombras e brilhos de uma Los Angeles que já se despedaçava sob o peso de seus próprios sonhos.



Em meio às tensões internas e à decadência pessoal de Morrison, o grupo encontrou uma forma de purificação: o retorno ao blues. Um blues sujo, elétrico, impregnado de psicodelia e desespero. É como se o The Doors, diante da própria ruína, resolvesse olhar nos olhos daquilo que sempre os assombrou, a verdade crua da alma americana.


Ouvir L.A. Woman é como entrar em um bar noturno na Sunset Boulevard e perceber que a cidade também está bêbada. Pelo menos, é essa sensação nostálgica e onírica que se aloja na alma; existe uma beleza genuína no passar de uma faixa pra outra. Como se cada canção fosse uma espécie de janela que se abre para uma Los Angeles febril, onde o prazer e o colapso dançam juntos. A faixa-título é uma viagem acelerada por essa paisagem: Jim conduz o ouvinte como um motorista em transe, gritando versos entre fumaça, ruído e vertigem. O refrão é pura combustão.


Mas o que há por trás dessa energia não é celebração, é exaustão. Morrison soa áspero, arranhado, humano. Sua voz perdeu o verniz e ganhou alma. O desgaste físico se transforma em força dramática, e o que poderia ser o fim vira confissão. E isso, talvez, seja a maior beleza desse disco: o lado poético e humano dançando até o fim.


“The Changeling” abre o álbum como um soco rítmico: groove de soul, guitarras ácidas, teclados pulsantes. Morrison declama, mais do que canta. Já “Been Down So Long” é puro blues de bar — riffs viscerais que lembram Chuck Berry, mas atravessados por uma dor quase existencial. Em “Love Her Madly”, o The Doors flerta com a leveza da surf music, como se quisesse respirar entre um delírio e outro.


E então vem “Riders on the Storm”: trovões, chuva, teclas hipnóticas, um transe. A canção parece surgir do inconsciente coletivo da banda, misturando jazz, poesia e melancolia cósmica. É um epitáfio sem ser explícito, Jim canta sobre a estrada, o perigo e o acaso como quem já pressente o próprio fim. O clipe parece ter sido extraído de algum road movie cult, o que deixa ainda mais explícito esse desejo de liberdade e viagens que resumem a vida em pouco mais de sete minutos. Obra-prima.



L.A. Woman completou 54 anos em abril e, ainda permanece como um espelho rachado do sonho americano. O álbum não envelheceu: apenas ganhou camadas. Sua atmosfera crua e quase espiritual atravessou gerações porque fala de uma angústia que ainda é nossa, a de viver em um tempo onde tudo é velocidade, ruído e solidão.


Morrison partiu poucos meses depois do lançamento, em Paris, deixando para trás não apenas uma banda, mas um símbolo. Sua última voz registrada não é de um deus do rock, mas de um homem à beira do abismo, tentando compreender o próprio reflexo.



O álbum é, afinal, mais do que um registro: é um corpo em combustão e uma elegia brilhante para a música, canções que resistiram ao efeito do tempo e seguem tão profundas quanto urgentes. Um testamento de carne, álcool e poesia. E, toda vez que o ouvimos, a tempestade volta a cair sobre Los Angeles, e sobre nós também.


ree

Comentários


bottom of page