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Screamadelica: a revolução líquida, dançante e lisérgica que salvou o rock da caretice

Um mergulho lisérgico no disco que trocou a angústia pela dança e o barulho pela epifania

Primal Scream
Imagem: Reprodução

1991 foi um ano de explosão. De sangue novo pingando no vinil. Foi quando o grunge sacudiu Seattle, o hip hop expandiu fronteiras, e a eletrônica invadiu de vez as veias do mainstream. Mas no meio do furacão, um disco se erguia como um templo iluminado por laser, ácido e soul: Screamadelica, do Primal Scream. Um delírio sônico que atravessou gêneros, desafiou fronteiras e queimou o chão sob os pés do rock alternativo. Se o Nevermind do Nirvana foi o grito primal da juventude angustiada, Screamadelica foi seu êxtase — o ritual de transcendência daquelas almas que preferiam se perder na pista do que morrer de tédio.



A jornada começou nos anos 80, com uma banda ainda tateando o próprio som. Bobby Gillespie — ex-baterista do Jesus and Mary Chain — queria fugir da sombra do noise e encontrar luz. Com Jim Beattie, fundou o Primal Scream, mergulhando no indie pop doce, ensolarado, quase etéreo, inspirado nos Byrds e suas guitarras que soavam como sinos. Mas logo a doçura deu lugar à urgência. O Scream flertou com o hard rock dos Stooges, com a psicodelia garageira, com a rebeldia pós-punk. Estavam inquietos, em combustão, em busca da centelha que ainda não sabiam nomear.


Essa centelha explodiu quando conheceram Andrew Weatherall, mago dos beats, DJ forjado nas raves de Londres e nos clubes suados onde a house music encontrava o céu. Foi ele quem pegou I’m Losing More Than I’ll Ever Have, uma balada soturna, e a transformou em Loaded: um hino dançante, gospel, cósmico, com manifesto beatnik na abertura e groove no coração. Ali nasceu Screamadelica. Ali começou a metamorfose.



O disco é um portal. Uma travessia. Uma revelação. Um labirinto de sensações em que cada faixa é uma sala diferente: você entra em uma igreja, sai em uma rave, cai em uma praia com luz de néon, flutua num céu de dub e pousa em alguma galáxia psicodélica onde o tempo não existe mais. Movin’ On Up abre como uma missa profana, com guitarras à la Rolling Stones e um coral gospel te puxando pela cintura. Já Slip Inside This House é ácido puro: um mantra techno-funk psicodélico com vocais de Robert Young que parecem sussurrar segredos de outro mundo.



O som não respeita lógica nem cronologia. "Don’t Fight It, Feel It" te joga direto no centro de uma rave — luzes piscando, corpos suados, ácido diluindo a razão. Os vocais de Denise Johnson não cantam: seduzem, provocam, hipnotizam. É o som da libertação do corpo. Da alma que dança. De uma geração que queria mais do que sobrevivência — queria transcendência.


Screamadelica não foi só ousado. Foi necessário. Num mundo onde o rock começava a se levar a sério demais, o Primal Scream trouxe de volta o prazer. O groove. A pista. E não de forma vazia — mas com profundidade, com experimentação, com trip. É um disco onde cada camada tem sabor, onde cada batida tem peso, onde cada ruído é escolha. “Inner Flight” soa como um sonho dentro de outro sonho: instrumental, psicodélica, cheia de ruídos metálicos e texturas que lembram Sgt. Pepper’s, mas em versão chapada, líquida, flutuante.


“Come Together” é pura comunhão — uma colagem de techno, dub, indie, spoken word e pulsação cósmica. Uma viagem sonora que não quer chegar a lugar algum, porque já está em todos. E logo depois vem Loaded, clássico instantâneo, feito pra pistas eternas. Um hit sem tempo, sem lugar, que poderia estar tocando agora, nesse segundo, em algum club londrino que nunca fechou.


E no meio de tanta entrega e delírio, "Damaged" surge como respiro e ferida. Uma balada que carrega no DNA tudo que viria a definir o britpop: a melancolia, a vulnerabilidade, a pompa contida que inspiraria bandas como Oasis e Blur a fazerem do sentimentalismo uma bandeira. Bobby Gillespie canta como quem se lembra de algo que nunca existiu. Como se o amor fosse um sonho do qual se acorda sempre cedo demais.


O mais insano é como tudo isso funciona junto. Nada parece feito para agradar. Nada parece moldado por fórmulas. Screamadelica é caos que se organiza no prazer. É um corpo em transe. Uma mente em combustão. Um som que desafia explicações porque não foi feito pra ser explicado — foi feito pra ser sentido. Na alma. No peito. No quadril.


Mesmo mais de três décadas depois, o álbum ainda soa fresco, incendiário, brilhante. Seu poder está intacto, sua essência indomável. Ele não pertence a 91. Ele pertence ao agora. Ao sempre. Ao momento em que você fecha os olhos, pressiona play e desaparece por dentro do som.


Screamadelica é mais que música. É liturgia pagã. É festa religiosa. É a lembrança de que a arte pode — e deve — te tirar do chão. E tem discos assim: que não se descrevem. Que não cabem em palavras. Que só podem ser vividos com o corpo aberto, olhos fechados, e alma em colapso de prazer.

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