top of page

Yankee Hotel Foxtrot: o som do mundo entre parênteses

Atualizado: há 1 dia

Esse disco soa como se o coração tivesse sido gravado por cima de uma fita VHS usada

Imagem: Reprodução
Imagem: Reprodução

Não é um disco. É um corpo em combustão. Um rádio quebrado tentando sintonizar sentimentos que a gente mal sabe nomear. Um artefato vindo do futuro, perdido no tempo, encontrado por acaso por quem tava pronto pra sentir tudo de novo — e mais forte.



Yankee Hotel Foxtrot não chegou fácil ao mundo. Ele nasceu com o cordão umbilical enroscado, puxado pra fora por uma banda que não queria mais ser o que esperavam dela. Não queria ser “alternativa”, nem “country”, nem “acessível”. Queria ser livre — e sangrar bonito no processo.


Jeff Tweedy e companhia entraram em estúdio com uma parafernália de ideias, de sons, de vontades. E construíram um Frankenstein poético, cheio de falhas perfeitas. Batidas que falham de propósito. Guitarras que chegam atrasadas. Silêncios que falam mais que os refrões. Cada faixa é uma espécie de carta não enviada, uma lembrança desbotada, uma tentativa de reorganizar o caos interno com ruídos externos.


Wilco (da esquerda para a direita): Leroy Bach, Jeff Tweedy, Glenn Kotche e John Stirratt. 2002
Wilco (da esquerda para a direita): Leroy Bach, Jeff Tweedy, Glenn Kotche e John Stirratt. 2002

Mas o mundo — ou melhor, a gravadora — não estava pronta. A Reprise/Warner torceu o nariz, disse que aquilo não era comercial, que ninguém ia entender, que não tinha hit. E o Wilco fez o que se faz quando a arte é mais urgente que o contrato: comprou as fitas de volta. Sem gravadora, mas com o disco no colo. Uma mãe que foge do hospital com o filho prematuro no peito.


A ironia é que a Nonesuch Records, um selo “pequeno”, mas também parte do conglomerado Warner, acabou lançando o disco depois. A mesma corporação que chutou o álbum, depois vendeu ele. O capitalismo é uma cobra faminta com amnésia.


Agora imagina isso: 2002. A internet ainda chia pra conectar. Nada de Spotify, YouTube, TikTok. Era rádio Terra, Winamp, Kazaa, paciência. E nesse vácuo tecnológico, Yankee Hotel Foxtrot caiu como meteorito. Uma revolução silenciosa, como foi OK Computer em 1997, só que mais íntima, mais ferida, mais humana.



O Wilco, que já vinha rompendo com o rótulo de “Country Alternativo” desde Being There (1996), e flertando com o pop psicodélico em Summerteeth (1999), aqui rompe tudo. Rasga as próprias peles. Cria algo que é, ao mesmo tempo, experimental e acessível. Complexo e sedutor. Sofisticado e brutal.


A faixa de abertura, “I Am Trying to Break Your Heart”, é um manifesto de ruína e beleza. Um amor naufragado, um delírio eletrônico. Sintetizadores, sons metálicos, dissonâncias — tudo conduzido com uma calma quase cínica. É como uma máquina tentando sonhar com a própria humanidade.


E quando chega “Kamera”, é como abrir a janela depois de dias trancado no quarto. Violões suaves, melodia solar, mas ainda com aquela tristeza atravessada, aquela sombra fina que persegue até a música mais doce. Parece Beatles, parece folk-pop, mas parece Wilco, acima de tudo.


“Ashes of American Flags” é um velório em câmera lenta. Um país desfeito em palavras e estática. “Todas as minhas mentiras são sempre desejos”, canta Tweedy, e cada sílaba pesa como quem enterra uma ideia que já não serve mais. Depois do 11 de setembro, essa faixa virou lamento e premonição.


E aí vem “Jesus, Etc.” — o coração do disco, o centro nervoso. Violinos flutuando, guitarras sussurradas, e versos que parecem cair do céu direto na tua garganta: “Prédios altos tremem, vozes escapam…” A música não grita. Encanta. Hipnotiza. E destrói por dentro com delicadeza. “Heavy Metal Drummer” é a nostalgia do que não volta mais, mas sem a melancolia paralisante. É leveza no meio da densidade. Uma pausa pra sorrir, ainda que com os olhos cheios.



Jay Bennett saiu da banda no meio do processo, as tensões internas quase explodiram, mas o disco nasceu. E envelheceu bem. Porque ele já nasceu velho, sábio, à frente. Ele não queria ser moderno. Ele queria ser necessário. E foi.



Yankee Hotel Foxtrot é disco de encruzilhada. De quando o mundo muda e você precisa escolher entre repetir ou reinventar. E o Wilco escolheu o caminho mais difícil. O mais bonito. O mais verdadeiro.


Eles estavam certos. A gravadora, errada.


Mas você já sabia disso.

Comments


bottom of page