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Por que ainda ouvimos “I Wanna Be Adored”, do The Stone Roses

Algumas faixas chegam como um sussurro antigo, desses que parecem atravessar décadas para encontrar você no momento certo

The Stone Roses
Imagem: Reprodução

Em 1989, quando o rock britânico parecia caminhar sem direção, pressionado pelo fim da new wave, pela ressaca pós-punk e pelo desencanto social dos anos Thatcher, quatro garotos de Manchester apareceram com um disco que soava como um nascer do sol depois de anos de cinza. The Stone Roses, o álbum de estreia, não foi apenas um lançamento certeiro: foi uma reorganização do imaginário. Uma carta de intenções. Uma fresta luminosa num país acostumado a implodir antes de renascer.



No centro desse impacto está “I Wanna Be Adored”, uma faixa que não começa: ela emerge. Cresce com uma paciência quase divina, como se estivesse se materializando do ar úmido do Norte da Inglaterra. A guitarra de John Squire se estende como uma névoa dourada, a bateria de Reni pulsa num ritual lento, e o baixo do já saudoso Gary Mani respira por baixo das pedras, como se ele fosse a espinha dorsal da própria paisagem. É impossível ouvir essa introdução sem sentir que aquele baixo está segurando o mundo no lugar.


E agora, com a partida recente de Mani, a faixa ganha outra espessura sentimental em nossos corações. Sua presença não era apenas musical; era uma vibração, um pulso, uma assinatura meio que espiritual. Ele tocava como quem ilumina um caminho, e, de certa forma, ainda ilumina.


A letra, quase um mantra, quase uma confissão, repete “I wanna be adored” com a insistência de quem não está apenas dizendo, mas se escutando. Não é exagero afirmar que existe ali uma espécie de liturgia do ego: um pedido, um rito, um desnudamento. Mas esse desejo, tão humano e antigo, nunca aparece como algo ingênuo. Ian Brown já comentou que tratou o anseio por adoração como um pecado moderno, tão corrosivo quanto a ganância ou a luxúria. Uma provocação direta ao culto à imagem, à obsessão por aprovação, à idolatria que consome sem preencher.


E então surge o verso que rompe qualquer leitura superficial: “I don’t have to sell my soul / He’s already in me.”


A força dessa linha está justamente na ambiguidade. Não se sabe se “ele” é o ego inflado, uma entidade espiritual, um impulso ancestral ou apenas o peso da pressão social. Mas o que importa é a ideia: o desejo não vem de fora, não precisa de barganhas. Ele já mora dentro do indivíduo, como se fosse uma pulsação inevitável. A música sugere que, quando alguém deseja ser adorado, não está respondendo ao mundo, mas a si mesmo. E é por isso que o vazio que acompanha esse desejo nunca é plenamente saciado.



Essa combinação de letra minimalista, atmosfera hipnótica e intensidade contida cria uma sensação de inquietação: aquela impressão de que a busca por validação sempre se torna um buraco sem fundo, uma fome que nunca apaga o próprio fogo. “I Wanna Be Adored” funciona quase como um espelho. Ele não aponta o dedo, mas devolve o olhar.


Historicamente, se formos parar para analisar friamente, a faixa representa um ponto de virada: a reorganização do rock britânico em torno de uma estética própria. Antes dos baggy jeans, dos festivais em campos abertos, do hedonismo inteligente e das guitarras que soavam como tempestades solares, existiu ali uma semente. Um DNA. O começo do que, anos depois, chamariam de Britpop, mesmo que os Roses fossem muito mais que isso, e, ao mesmo tempo, nada daquilo.


Sem Stone Roses, talvez nunca tivéssemos Oasis. Liam Gallagher sempre deixou claro: Ian Brown era seu herói, seu norte, seu molde de atitude. O modo de segurar o microfone, o caminhar confiante, o desprezo elegante, tudo nasce ali, naquela Manchester mística que transformava garotos comuns em profetas do barulho. Noel Gallagher, por sua vez, só decidiu que “era possível” viver de música depois de ver os Roses no Spike Island, em 1990 — um show que virou lenda, rito, batismo coletivo.



“I Wanna Be Adored”, nesse contexto, não é só uma canção: é o primeiro sopro de um futuro inteiro. É a fundação invisível da música britânica dos anos 90. É o ponto onde psicodelia, pop, post-punk e ambição se encontraram e, por alguns minutos, falaram a mesma língua.


E por que ainda ouvimos? Porque a música captura algo que não envelhece: a dúvida e o desejo de ser visto. A fome de significado. O brilho que nasce quando você decide ser mais do que o mundo espera. A música nos lembra que toda pessoa, em algum momento, até as mais discretas, até as mais feridas, já quis ser adorada. Nem por todos. Mas por alguém. Por algo. Pelo próprio destino vai ver.


No fim, “I Wanna Be Adored” não é sobre vaidade. É sobre identidade. Sobre tentar existir o bastante para deixar uma marca. Sobre erguer a cabeça e dizer: eu estou aqui. E talvez seja por isso que, quando a introdução começa, sentimos aquele sussurro antigo atravessando o tempo outra vez, e, agora, com um certo vazio a mais: o de Mani, ainda segurando a linha de baixo que sustenta tudo, mesmo depois de ter deixado o palco.



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