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Por que ainda ouvimos “Alvorada Voraz”, do RPM

Antes do dia nascer, o país já carregava sua própria noite

RPM, Rádio Pirata ao vivo
Imagem: Reprodução

O Brasil de meados dos anos 80 era uma bomba-relógio. Uma geração cercada pelo medo, da inflação, da repressão, da bomba que poderia cair a qualquer momento. E foi dentro desse caos, entre o fim da ditadura e a falsa promessa de liberdade, que o RPM lançou “Alvorada Voraz”. Um grito enérgico, elétrico e desconfiado. Um retrato de um país que ainda não sabia o que fazer com a própria liberdade, e talvez, ainda hoje, não saiba.



A letra é um raio-X da estrutura de poder brasileira, que há décadas se mantém intacta. O presidencialismo de coalizão, os conchavos, os arranjos que perpetuam a corrupção, tudo já estava ali. Paulo Ricardo e Luiz Schiavon transformaram essa radiografia em música, apontando nomes, casos e feridas. “Sudam, Maluf, Lalau, Barbalho, Sarney.” A canção não insinua: denuncia. E faz isso com a coragem de quem entende que a arte também é um ato político.



Nos versos, o RPM mistura escândalos reais com referências culturais e literárias. O Caso Morel, inspirado no romance de Rubem Fonseca, reflete a violência urbana que atravessa classes sociais e expõe um Brasil marginalizado. O crime da mala — o assassinato de uma mulher por seu marido, Giuseppe Pistone, em 1928, foi um dos primeiros grandes processos criminais do país, símbolo de brutalidade e impunidade. Já o caso Coroa-Brastel, de 1985, envolveu ministros do regime militar em um desvio milionário de verbas públicas. Todos exemplos de um país que insiste em transformar a corrupção em rotina.



Em 2002, ao regravar a faixa para o RPM MTV, Paulo Ricardo atualizou a letra — e foi processado por Paulo Maluf. O tempo passou, os escândalos mudaram de nome, mas o conteúdo continuou o mesmo. Jader Barbalho, José Sarney, Nicolau dos Santos Neto (o “Lalau”) e tantos outros voltaram às manchetes. Como se o Brasil fosse uma reprise sem fim, e “Alvorada Voraz” a trilha sonora desse eterno recomeço.


O que faz dessa música algo ainda mais potente é a forma como ela traduz o sentimento coletivo de impotência. “Medo de tudo, medo do nada, medo da vida assim engatilhada.” O país é descrito como um filme de terror onde os vilões são os mesmos de sempre. “Exércitos que nos guardam da paz”, canta Paulo Ricardo, em ironia direta à herança militar que ainda comandava os bastidores. E o refrão, que explode como uma prece cansada — “vendo esse filme passar, assistindo ao fim, vendo o meu tempo passar” — é o retrato exato de uma nação fadada a ver sua história em looping.



“Alvorada Voraz” é mais do que uma canção sobre corrupção. É sobre o desespero de quem assiste ao tempo passar e percebe que nada muda, ou pior, que tudo se repete. É uma denúncia e, ao mesmo tempo, uma elegia.



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