O lado B sempre foi melhor: se eu tivesse uma banda
- Marcello Almeida
- há 19 horas
- 3 min de leitura
Não seria sobre hits, seria sobre feridas

Se eu tivesse uma banda, ela não começaria com um ensaio. Começaria com uma ausência. Com aquela sensação de que tem alguma coisa errada no ar, e a única forma de decifrar isso é ligando o amplificador e deixando a guitarra gritar e berrar por você. A banda nasceria no mesmo lugar onde a maioria dos relacionamentos termina: um silêncio esquisito depois de uma última música boa.
O som seria lo-fi, melódico, sujo e sincero. Um Jesus and Mary Chain em crise de identidade. Um Teenage Fanclub mais bêbado do que apaixonado. O vocal afundado na mixagem, meio tímido, meio confessional, tipo se eu cantasse de costas pro público. As letras não tentariam explicar nada — só registrar. Como quem anota num guardanapo algo que doeu demais pra esquecer.
Teria o existencialismo melódico do R.E.M., o sarcasmo romântico dos Manic Street Preachers, e aquele tipo de tristeza que você não consegue nomear, só sente. A estética seria simples, mas não simplista. Seria uma banda com cheiro de quarto fechado, cortina suja, pôster dos Smiths meio desbotado, e fone de ouvido enfiado até a alma.
E aí viria o Wilco. Minha banda teria o espírito de Yankee Hotel Foxtrot, aquele disco que parece um acidente aéreo emocional. Onde cada faixa soa como se estivesse tentando se manter inteira no meio do colapso. “Jesus, etc.” seria uma religião secreta. “Ashes of American Flags” a oração mais honesta que já ouvi. E eu escreveria uma música só pra ela — aquela garota que me emprestou o A Ghost Is Born e nunca mais respondeu. Porque é isso: tem discos que são mais sobre quem te apresentou do que sobre o que você ouviu.
Claro que teria Nirvana. Mas não o Nirvana de camiseta estampada. O Nirvana que você ouve sozinho, no escuro, com o volume no talo, tentando entender por que certas dores soam tão familiares. E talvez até um pouco de Pearl Jam. Não o dos hits, mas o dos lados B. Aquele que ainda acreditava em alguma coisa. Porque no fundo, minha banda seria sobre isso: gente tentando acreditar. Mesmo sem saber no quê.
E no meio disso tudo, uma sombra brilhante: David Bowie. Mas o Bowie da transgressão, o que desconcertava, o que fazia da dúvida uma estética. Minha banda herdaria dele essa febre de ser e des-ser. O impulso de não se repetir. De parecer que você está sempre no limite entre a performance e o colapso.
O disco de estreia se chamaria Mixtape pra Quem Não Veio. Seria prensado só em vinil e distribuído em lojas pequenas, daquelas que ainda vendem CD usado, zines com grampeador torto e adesivo de banda extinta. A capa teria um frame do Alta Fidelidade. Aquele momento em que o Rob segura um disco e percebe que tudo o que ele sente está ali — prensado entre duas faixas que ele jurava ter esquecido. E é isso. Minha banda seria isso. Uma tentativa de dizer “eu sinto falta de você” sem precisar escrever essas palavras.
Nas entrevistas, a gente citaria Alex Turner e falaria mal do último álbum do Arctic Monkeys — calma, brincadeira. Diríamos que Star Wars perdeu a alma depois do Episódio VI. E que o amor verdadeiro mora entre duas pessoas que escutam Wilco na mesma sala, em silêncio.
O clipe seria filmado em VHS. Numa lavanderia. De madrugada. Ela estaria lá. Com uma blusa dos Pixies. E eu não teria coragem de falar nada.
Se eu tivesse uma banda, ela teria nascido no calor das rádios dos anos 90, entre um grunge mal gravado na KEXP e uma fita com Oasis, Blur, e uma faixa escondida do Elastica. Teria DNA britânico, mas coração americano. Seria metade Britpop, metade dor de crescimento. Metade new wave dos 80, metade desencanto do século XXI. Uma mistura de delay com angústia. Uma batida seca, mas sincera. Um refrão sussurrado no fim de um show vazio.

Minha banda não existiria pra fazer sucesso. Ela existiria porque não deu certo. Porque alguém foi embora. Porque uma conversa terminou com “a gente se fala”. E nunca se falou.
Minha banda seria uma trilha sonora pra tudo que não virou cena. Pra todos os filmes que a gente não viveu. Pra todos os beijos que só aconteceram no repeat mental. Seria uma comédia romântica indie que ninguém teve tempo de dirigir. Uma lembrança que mora no fundo de uma caixa de sapato junto com ingressos antigos, fotos desbotadas e CDs riscados.
No fim, talvez minha banda nem precisasse subir no palco. Bastaria tocar uma vez, no fone de alguém, no momento certo. E deixar uma marca.
Porque música boa é isso: não te acompanha.
Te assombra.
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