O Descobrimento do Brasil (1993) é o grito mais humano da Legião Urbana
- Marcello Almeida
- 22 de jun.
- 3 min de leitura
“O Brasil é um espelho estilhaçado — e a Legião Urbana tentou colar os cacos com poesia, fúria e ternura”

Tem discos que não se ouvem — se sentem com o corpo inteiro. O Descobrimento do Brasil é um deles. Um sopro de vida e morte, esperança e desespero, luz e sombra no mesmo verso. Lançado em 1993, esse sexto trabalho da Legião Urbana é o coração exposto de uma banda que já não precisava mais provar nada, mas escolheu sangrar bonito, com dignidade e coragem, no meio de um Brasil destroçado.
Dois anos depois do sombrio V, Renato Russo renascia diante do espelho. A sobriedade recém-conquistada, a dor cravada no peito, a lucidez que machuca mais do que qualquer vício — tudo isso lateja nas 14 faixas que compõem o disco mais plural, vulnerável e ousado da Legião. Não à toa, muitos torceram o nariz na época. Porque quando a arte não é domesticada, quando ela inquieta, transforma e desorganiza certezas, ela demora pra ser compreendida.
O Descobrimento do Brasil é exatamente isso: um disco de descobertas amargas e doces. De redescobrir o amor, a fé, o país, os amigos, o corpo, o tempo perdido. E como tudo isso pode escapar por entre os dedos.
A porrada já vem logo de cara com “Perfeição”, talvez a letra mais feroz já escrita por Renato. Uma marcha fúnebre travestida de ironia cruel: “Vamos celebrar a estupidez humana”. É o país em ruínas, a sociedade anestesiada, a crítica que continua atual como ferida aberta — e dói mais porque é verdade. Mas logo depois, como se pedisse perdão pela raiva, vem a faixa-título com uma ternura quase sussurrada. É como se Renato dissesse: “Eu continuo acreditando.” Mesmo em meio ao caos.
Musicalmente, o disco brinca de ser vários. Tem eletrônica, bandolim, violão folk, guitarras à la pós-punk, timbres esquisitos e encantadores, referências literárias, espirituais, existenciais. Em “Do Espírito”, eles quase soam grunge. Em “La Nuova Gioventù”, o instrumental é puro trovão emocional. Mas é em faixas como “Vamos Fazer um Filme” que a Legião atinge sua maturidade mais sincera — versos de doçura devastadora.
E aí vem “Giz”. Ah, Giz. Uma das canções mais belas já compostas em língua portuguesa. Renato canta como se desenhasse o sol no asfalto molhado, como uma criança que não perdeu o encantamento. É simples e imensa ao mesmo tempo. Um pedido de amor sem arrogância, sem pressa, sem máscara. Um retrato de quando a poesia se ajoelha aos pés da pureza. Como ele canta: “E mesmo sem te ver, acho que estou indo bem...” — e dói, porque é bonito demais.
O disco ainda tem "Vinte e Nove", numerologia existencial e suicídio velado, e “Um Dia Perfeito”, que enterra com delicadeza o medo da morte para celebrar o presente com quem se ama. Tem “Love in the Afternoon”, homenagem aos mortos do rock, e tem a melancolia suave de “A Fonte” e “Os Anjos”.
Sim, O Descobrimento do Brasil não é fácil. Mas o Brasil também nunca foi. E talvez por isso ele seja tão necessário. Ele não tenta te convencer de nada. Ele só te convida pra sentir. E quando você aceita, percebe que a Legião nunca foi uma banda — foi uma confissão coletiva, uma terapia em alto volume, uma revolução emocional.
Renato Russo descobriu o Brasil como quem descobre o próprio corpo marcado, machucado, mas ainda vivo. E escreveu isso com a alma — como se fosse a última vez. Talvez tenha sido mesmo. Porque O Descobrimento do Brasil não é só um disco. É um testamento de esperança ferida. Uma flor brotando no meio do esgoto.
E o que é mais brasileiro que isso?

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