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Foto do escritorMarlons Silva

Novo Hellraiser consegue dar fôlego a uma cultuada e desgastada franquia

Atualizado: 22 de out. de 2022

Reboot honra com êxito o legado da obra de Clive Barker, aposta em novas caracterizações, sem comprometer a essência da história sanguinária que arrebata admiradores há mais de 30 anos

CRÉDITO: Hulu

Foi preciso uma década e meia, praticamente, para que o quebra-cabeças fosse solucionado de vez e portas definitivas se abrissem, viabilizando a materialização do projeto. Demorou, mas está aí o tão aguardado filme revisitando a sombria narrativa que se tonou perturbadoramente célebre e cativou apreciadores inveterados mundo afora. Público esse que acabou infligindo a Pinhead e seus pares diabólicos a notável condição de aterradoras figuras destacadas no vasto universo cultural pop.

 


 

É quase impensável que Clive Barker e Doug Bradley, lá pela segunda metade dos anos 80, imaginassem que suas realizações perversas no campo artístico gerariam frutos docemente macabros, espalhados em representações das mais diversas, sejam nas t-shirts pretas, canecas de café, bonequinhos sinistros e simpáticos em vitrines de lojas de shopping centers e até ousados cosplayers ostentando formosidade dark em eventos temáticos ou exposições geeks.


Verdade seja dita: ‘Hellraiser III – Inferno na Terra’, de 1992, já não seduzia mais tanto quantos os dois primeiros e insuperáveis clássicos ‘Hellraiser – Renascido do Inferno’ (1987) e ‘Hellraiser II – Renascido das Trevas’ (1988). Ambos magnificentes e conceitualmente definidores dentro do espectro do horror cinematográfico. O que ajuda muito o terceiro filme a não ser totalmente apagado da memória dos fãs talvez seja a música-tema com Motörhead (Ozzy Osbourne, parceiro na composição, também gravou). Como não se lembrar do divertido videoclipe, no qual o grande Lemmy dá as cartas literalmente encarando o Pinhead de Bradley em um duelo de pôquer, ao som do hard rock? Há também, dentro do filme, uma participação da banda heavy Armored Saint. Não é por acaso que todo esse universo, ou melhor, inferno, que a marca Hellraiser trouxe acabou se tornando objeto de culto de tribos sonoras como headbangers e góticos, entre outras.


Após a trilogia inicial, as sequências que vieram, então, foram um tanto desalentadoras. Produções medianas, algumas deveras esquecíveis, outras um tanto detestáveis mesmo. Enfim, desgaste ocasiona desinteresse.


Coube a David Bruckner a missão infernal de tentar proporcionar uma obra admirável e surpreendente ao mesmo tempo, recolocando a saga de carnificina das trevas aliada ao prazer sádico e funesto dos cenobitas no honroso panteão soturno da sétima arte. Difícil resultar em desastre, considerando o currículo de um diretor que tem no percurso os excelentes ‘O Ritual’ (2017) e ‘A Casa Sombria’ (2020), sendo este último uma demonstração grandiosa da intensidade de Rebecca Hall em cena, lidando com temas penosos como suicídio e luto.


Falar do ‘Hellraiser’ de 2022 é se referir especialmente à atriz Jamie Clayton (conhecida pela série Sense8), afinal desde que se anunciou que a figura tida como símbolo maior da trama - outrora a cargo de Doug Bradley - seria interpretada por ela, as expectativas ganharam uma impressão positivamente diferenciada, pois já se percebia aí uma das grandes sacadas da produção. E é bastante louvável que inclusões assim nos elencos principais tenham ganhado certa força e destacável visibilidade no cinema contemporâneo. E convém lembrar que Clive Barker não teve qualquer preocupação em “discutir o sexo dos cenobitas”, ao escrever sua obra original. Clayton marca o filme com presença convincente, se impõe assombrosamente e já se coloca, na história da franquia, como responsável por um personagem de grandeza memorável. Ela consegue propiciar efeito semelhante à mesma marca que Bradley alcançou com seu Pinhead, nos filmes primordiais. O líder dos monstros dirigidos por Bruckner agora recebe a alcunha de Priest.

 


 


Os demônios ganharam diferentes aspectos quanto à composição da aparência. Os adereços e indumentárias associadas ao segmento BDSM e também ao universo punk deram lugar a detalhes que são explorados no próprio físico cenobita. Muitos admiradores, sem dúvida, ainda irão preferir o temível “charme” dos anos 80, no caso daquelas inevitáveis comparações que sempre acabam ocorrendo mesmo. Algo bastante compreensível.


Não houve mudança radical no que se refere à enigmática caixa conhecida como Configuração do Lamento, o chamativo quebra-cabeças, cuja solução permite que uma dimensão desconhecida, habitada por seres sádicos e aterrorizantes, se abra para o mundo humano. É o inferno de Barker e seus cenobitas, em meio a labirintos caóticos e extensos inseridos na vasta escuridão, muros intransponíveis, desoladores e austeros, espaços que se assemelham a masmorras e ambientes destinados à tortura e à degradação. O quebra-cabeças do novo filme apresenta um complemento metálico perfurocortante, que se aciona após a conclusão (bem-sucedida?) no manuseio.


Reboot honra com êxito o legado da obra de Clive Barker, aposta em novas caracterizações, sem comprometer a essência da história sanguinária que arrebata admiradores há mais de 30 anos.

Cabe oportunamente aqui lembrar que o clássico livro do escritor inglês Aldous Huxley, ‘As Portas da Percepção’, da década de 1950, foi citado por um personagem no ótimo quadrinho da franquia publicado nos anos 90 (na época, a HQ saiu no Brasil pela Editora Abril). A vontade humana de explorar sensações – então - não experimentadas na vivência comum e o fascínio do desconhecido que atrai, abordados na obra de Huxley, encontram eco perverso e soturnamente tumultuoso na esfera artística concebida pelas inspiradas criações de Clive Barker.


O objeto misterioso, na trama, acaba sendo encontrado pela protagonista Riley, vivida por Odessa A’zion, juntamente com seu namorado Trevor (Drew Starkey). Ambos tomam conhecimento da existência de um colecionador excêntrico de arte, bem poderoso, chamado Roland Vought (o ator croata Goran Visnjic), o qual possui uma ligação profissional com a estranha Serena, interpretada pela excelente Hiam Abbass, veterana atriz palestina, um dos grandes nomes do elenco da prestigiada série ‘Succession’, em que ela é a magnata Marcia, esposa do figurão bilionário Logan. Ela e Jamie Clayton são os grandes trunfos em ‘Hellraiser’, embora a aparição de Abbass seja pequena. Mas sua personagem, com a magnitude da atuação, traz peso e enorme importância no desenvolvimento da narrativa.


Riley enfrenta seus próprios demônios no dia a dia. Dependência química e as consequências que este problema doloroso traz para o convívio social e familiar são evidenciadas no filme sem julgamentos e critérios moralistas. É um grande acerto do roteiro, sem dúvida. As escolhas da protagonista implicam em conflito direto na relação com o irmão Matt (Brandon Flynn). Ele e seu namorado Colin (Adam Faison) são as pessoas mais próximas de Riley, juntamente com Nora (Aoife Hinds). O irmão e os amigos presenciam constantemente as agruras e os conturbados momentos dela e, com isso, há sempre aquela sensação de perigo iminente e com toda a excessiva preocupação. Trata-se de alguém querido, com sua fragilidade, sofrendo com um problema de saúde que leva à deterioração contínua e deixa a vida sob persistente risco. Uma situação envolvendo Matt resultará ainda mais em dor e inevitável culpa para Riley, o que a colocará diretamente em contato com o suplício e o pavor trazidos pela caixa descoberta com Trevor.

Um ponto bastante forte para Bruckner são as cenas trabalhadas no interior de uma mansão. A claustrofobia e o desespero introduzidos no ambiente saltam - como ágeis correntes sob o comando de um simples gesto de Priest - da câmera com eficácia, levando o espectador a se jogar naquele martírio das trevas em que Riley, Trevor, Colin e Nora estão chafurdados. Um momento tenso e de extrema aflição que se passa com os personagens em um veículo ficará também fixado na memória dos apreciadores.

 


 

Dos labirintos da mente artisticamente perturbada de Clive Barker, o inferno criado vai de encontro ao insaciável desejo humano, à busca incessante pela neutralização da miséria da existência através de supostos prazeres desconhecidos. Ora, desejo e dor não são intrínsecos, como bem pensou Arthur Schopenhauer, filósofo alemão?


Este novo e bom ‘Hellraiser’ garante a permanência do legado artístico de Clive Barker no terror cinematográfico e também nos terrenos da cultura pop. O filme conquista sua medalha de bronze. Sobe nesse pódio olímpico dos infernos, se juntando aos dois primeiros. Considerando as figuras mais abomináveis do cinema que tanto se destacavam nos anos 80, como Freddy Krueger e Jason Voorhees, é perceptível que Barker quis ir muito além ao explorar, de maneira inovadora, os labirintos do medo e do pavor, com cenobitas sádicos, desejos, correntes, sangue, carne humana e ambientes lúgubres.


Uma frase do Pinhead de Doug Bradley direcionada à primeira protagonista, a Kirsty, da atriz Ashley Laurence, resume bem o espírito: “Teremos toda a eternidade para explorar sua carne.” Ainda bem.

 

Hellraiser

(2022)


Lançamento: 7 de outubro de 2022

Gênero: Terror, Mistério, Thriller

Direção: David Bruckner

Roteiro: Ben Collins, Luke Piotrowski, David S. Goyer

Duração: 120 min

Elenco: Jamie Clayton, Goran Visnjic, Odessa A'Zion, Hiam Abbass e outros


 

NOTA DO CINÉFILO: 8,5

 

TRAILER DO FILME:


 

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