top of page

Heroes: o grito apaixonado de um homem quebrado diante de um mundo em ruínas

Mesmo que por um dia. Mesmo que por um instante. Amar ainda vale a pena

David Bowie
David Bowie. Foto: Gareth Evans/Reprodução

Em 1977, no coração partido de Berlim, David Bowie se ajoelhou diante do mundo e decidiu gritar. Não era um grito de fúria, nem de medo — era um grito de amor. Um grito torto, afogado, meio sussurro, meio prece. Um grito humano. Frágil. Intenso.



Heroes nasce do frio. Do concreto rachado. Do eco de uma cidade dividida pela violência da história e pelos muros da própria existência. É o segundo capítulo da Trilogia de Berlim, e talvez o mais simbólico. Porque se Low foi o espelho estilhaçado, Heroes é o reflexo que Bowie tenta juntar, mesmo que os cacos o cortem.


A história começa um ano antes, no fim de 1976. Bowie — esgotado, afundado em drogas, delírios messiânicos e fantasmas de fama — foge para o Oeste de Berlim ao lado de Iggy Pop. Eles querem escapar dos holofotes. Querem respirar. Querem esquecer. E é ali, cercado por muros, soldados e cicatrizes, que Bowie encontra a arte de novo. E encontra também Brian Eno.



O que eles constroem juntos vai muito além de um disco. É uma paisagem sonora. É uma resposta ao absurdo. Heroes é feito de opostos: pop e vanguarda, silêncio e distorção, ternura e violência. Um coração batendo no fundo de uma máquina.


A faixa de abertura, “Beauty and the Beast”, já entrega a tensão: sopros metálicos, guitarras sujas, vocais deformados. Robert Fripp (do King Crimson) chega com riffs que parecem rasgar o tecido do tempo. “Joe the Lion” continua o transe — Bowie berra, se contorce, experimenta.


Mas é na faixa-título que tudo explode. “Heroes” não é apenas uma música. É uma cena. Um suspiro desesperado entre dois amantes separados por um muro. A voz de Bowie sobe, sobe, sobe — e não parece que ele canta: parece que ele luta contra o silêncio. “We can be heroes, just for one day.” É simples. É trágico. É lindo. Porque não é sobre vencer. É sobre resistir ao que parece inevitável. É sobre amar quando tudo desmorona.


E o contexto é cruelmente real: a canção foi gravada no Hansa Studio, a poucos metros do Muro de Berlim. Bowie observava da janela soldados, sombras, beijos roubados. Uma cidade dividida. Um povo com medo. E mesmo assim, ele canta. Mesmo assim, ele acredita.


O disco inteiro é costurado por sons que mais parecem paisagens emocionais. “V-2 Schneider” soa como uma homenagem torta ao Kraftwerk, cheia de clima cósmico e passos no escuro. “Sons of the Silent Age”, a única música finalizada antes das gravações, quase deu nome ao álbum. E encaixa perfeitamente na ideia: são canções que falam por aqueles que já perderam a voz.


O lado B mergulha em silêncio e abstração. “Sense of Doubt”, “Moss Garden”, “Neuköln”… são mares gélidos, desertos emocionais, trilhas sonoras de um espírito vagando pela cidade. Cada faixa é uma carta sem endereço. Bowie, Eno e Visconti criam atmosferas que não explicam nada — apenas fazem sentir.


E é isso que torna esse álbum tão vital. Ele não busca respostas. Ele só quer amar. Mesmo que por um segundo. Mesmo que em silêncio. Mesmo que sem futuro. É um trabalho feito por alguém que sobreviveu a si mesmo. Que teve tudo, perdeu tudo, e entendeu que a única forma de continuar é sentir. Bowie está no ápice criativo, sim, mas também está nu, exposto, humano. Ele não está mais interpretando um personagem. Ele está sangrando arte.



A Berlim dessa época não era apenas um cenário — era uma extensão da alma. Fria, partida, cheia de rachaduras. Mas foi nela que Bowie plantou uma flor.


E mesmo que só por um dia, ela floresceu.

⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️

Comments


bottom of page