Azul é a cor mais quente: o que ainda arde em nós
- Marcello Almeida
- 19 de ago.
- 3 min de leitura
Entre o desejo e o silêncio, é sempre o olhar que denuncia quem somos

Há filmes que envelhecem; outros amadurecem. Azul é a cor mais quente (2013), dirigido por Abdellatif Kechiche, pertence à segunda categoria. Mais de uma década após seu lançamento, a obra ainda reverbera — não apenas como um retrato da paixão entre duas mulheres, mas como um mergulho naquilo que nos torna humanos: o desejo, a descoberta e a inevitável dor de crescer.
Na época, a narrativa foi lida sobretudo pelo prisma da representação. O longa se tornou símbolo de visibilidade, um marco dentro do cinema ao abordar com intensidade a relação entre Adèle e Emma. Hoje, porém, quando os debates de gênero e sexualidade se tornaram mais amplos, fluidos e presentes no cotidiano, o filme pode ser relido de outra forma: como uma história universal sobre encontros que moldam identidades.
Mas é impossível falar de Azul é a cor mais quente sem reconhecer a sombra do preconceito. Adèle não enfrenta apenas os dilemas do desejo; ela enfrenta o olhar julgador da escola, a malícia dos colegas, a sensação de que viver plenamente aquele amor exigia, de alguma forma, desafiar o mundo. Essa camada, muitas vezes silenciosa, dá ao filme um peso social que ainda dialoga com os dias atuais. Porque, embora tenhamos avançado em debates e conquistas, a comunidade LGBTQI+ ainda carrega marcas de rejeição e invisibilidade. E o cinema, nesse sentido, segue sendo testemunha e denúncia.

O azul dos cabelos de Emma é, antes de tudo, o azul do mistério — aquilo que ilumina, mas também queima. Nesse sentido, o filme permanece atual: ele nos lembra que o desejo não cabe em rótulos, que a paixão é sempre transgressora, seja qual for a época. Mas talvez o que mais dialogue com o presente seja o contraste entre a intensidade desses encontros e a rapidez descartável das relações no mundo digital de hoje. Adèle e Emma se descobrem no toque, no olhar, no corpo, sem a mediação de telas ou algoritmos. O amor ali é físico, quase brutal em sua presença. E justamente por isso, tão distante da lógica imediatista que hoje governa os afetos.
Revisitar Azul é a cor mais quente em 2025 é perceber também o quanto ele antecipa discussões que hoje parecem naturais: a fluidez das identidades, a multiplicidade de desejos, a impossibilidade de reduzir a experiência amorosa a categorias fixas. Se, em 2013, o longa ainda foi visto como “um filme sobre relacionamento lésbico”, hoje podemos enxergá-lo como um retrato mais profundo da metamorfose que todo encontro provoca — independentemente de gênero, orientação ou idade.
Há ainda a dimensão da solidão. A dor de Adèle, quando a relação se desfaz, não é apenas romântica; é existencial. Trata-se da perda de uma versão de si mesma, aquela que só existia no reflexo da paixão. E isso talvez soe ainda mais familiar hoje, em tempos em que construímos versões de nós a cada relacionamento, a cada perfil, a cada tela. No fundo, Azul é a cor mais quente fala sobre o que se ganha e o que se perde quando crescemos — e esse processo nunca deixa de ser doloroso.
Mais de dez anos depois, a cor azul continua queimando. Não como moda, não como discurso de ocasião, mas como lembrança de que o amor verdadeiro — aquele que nos atravessa e nos transforma — é sempre maior que os rótulos. E que, em qualquer tempo, ainda que o novo brilhe com força, é o amadurecer silencioso que realmente nos molda.
No fim, o azul é menos uma cor e mais um estado: aquele que permanece em nós, mesmo depois que o amor se foi.

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