Aftersun: as coisas que a gente lembra — e as que só entende depois
- Marcello Almeida

- 12 de jul.
- 4 min de leitura
O que Aftersun constrói é raro. É delicado. É profundo. É o tipo de filme que te acompanha depois do fim. Um filme que você guarda. Um filme que te guarda

Tem filmes que gritam. Outros que sussurram. Aftersun quase não fala — e ainda assim deixa tudo em nós reverberando. Charlotte Wells, em sua estreia como diretora, entrega um dos filmes mais impactantes dos últimos anos. Um filme sobre amor, memória, perda, silêncio. Um filme sobre um pai e uma filha, mas também sobre tudo o que a gente vive com quem ama — e tudo o que a gente nunca soube que estava acontecendo ali, bem debaixo da superfície.
A história é simples: Sophie (Frankie Corio), de 11 anos, passa férias com seu pai, Calum (Paul Mescal), em um resort barato na Turquia. Eles se amam. Sorriem. Nadam juntos. Jogam sinuca. Cantam no karaokê. Vivem. Mas Calum, aos poucos, se mostra ausente em certos momentos, esvaziado, com os olhos em algum lugar que a filha ainda não consegue alcançar.
Vinte anos depois, agora adulta, Sophie tenta reconstruir essas lembranças. Tenta entender quem era aquele homem. O pai que ela conheceu — e o homem que ela não conheceu.
Essa busca é o coração do filme. É o que move a narrativa. É o que move a gente.
Wells escolhe não contar sua história por linhas retas, mas por fragmentos: cortes abruptos, trechos em VHS, lembranças borradas, imagens que vêm e vão como quem tenta, em vão, lembrar o cheiro de uma tarde. O filme é feito como a memória: não linear, não confiável, mas cheia de sentimento. E por isso mesmo, profundamente humana.

A forma como ela filma é de uma maturidade impressionante. Há ecos de After Life, de Hirokazu Koreeda, no uso do cinema como dispositivo de memória. Há a delicadeza emocional de um Richard Linklater, a dor silenciosa de um Mike Mills. Mas o que Wells faz é só dela. É novo. É íntimo. É um cinema que não explica — mas sugere, sente, respira.
Frankie Corio e Paul Mescal estão absolutamente sublimes. A química entre os dois é rara, verdadeira. Mescal, principalmente, faz de Calum um personagem devastador: um pai presente e afetuoso, mas ao mesmo tempo um homem esmagado por algo que não se nomeia. Um esgotamento existencial, talvez. Uma tristeza crônica. Ou só o peso de ser adulto e não estar bem — mas precisar parecer bem para o bem da filha.
Às vezes, olhar para o passado e ver o que você se tornou hoje pode estar muito longe daquilo que planejava. Isso, por si, acaba destruindo e corroendo a alma. É disso que Aftersun trata: do abismo entre quem fomos, quem queríamos ser e quem conseguimos ser. Daquilo que se quebrou no meio do caminho. Daquilo que ninguém viu — nem mesmo quem estava ali, ao nosso lado.
E o mais brutal é que Sophie, adulta, só entende isso agora. Só agora, com a idade que seu pai tinha naquela época, ela percebe os gestos, os silêncios, os sinais. O pai que sorria no karaokê era o mesmo homem que chorava no escuro do quarto. E ela, criança, não viu. Porque não podia ver. Porque não era a hora.
Charlotte Wells constrói isso com uma precisão quase invisível. Nada é óbvio. Tudo é sugerido. Cada detalhe — um reflexo no espelho, um mergulho mais fundo do que deveria, uma pergunta que não é respondida — carrega o peso do não-dito. E é aí que o filme se torna imenso.
A trilha sonora também tem papel crucial. “Losing My Religion”, do R.E.M., entra como uma pancada silenciosa. E quando Bowie e Queen cantam “Under Pressure” naquela cena da pista de dança, o filme atinge sua plenitude emocional. É o momento em que tudo explode: Calum dança, grita, se liberta, talvez pela última vez. E Sophie, na beira, observa — sem saber o que está vendo. Mas agora sabe.

Aftersun é, acima de tudo, um filme sobre aquilo que a gente só entende quando olha para trás. Um filme sobre um amor imenso que falhou não por falta de sentimento, mas por falta de ferramentas. Um pai que amou como pôde. Uma filha que hoje entende o que ele não conseguiu dizer. Uma relação que continua acontecendo, mesmo depois de tudo.
É também, e talvez isso seja ainda mais importante, um filme sobre a masculinidade silenciosa. Sobre os homens que não sabem como pedir ajuda. Sobre os pais que não aprenderam a existir fora do papel de provedores. Sobre os jovens que crescem carregando o peso de um mundo que não foi feito pra ouvir suas dores.
E aí Aftersun se torna algo maior: um gesto político, sutil, mas contundente. Um olhar profundo sobre saúde mental, sobre paternidade, sobre os limites invisíveis do amor. Porque amar alguém nem sempre é o suficiente. E isso não é culpa de ninguém.
Charlotte Wells, aos 35 anos, faz uma estreia que beira o impossível. Um filme contemplativo, gentil, bonito — e ainda assim cruel, abismal. Um filme que não subestima a inteligência emocional do espectador. Que confia no silêncio, no tempo, na sutileza.
A fotografia é de uma beleza melancólica, quase documental. E o uso do VHS, com suas imperfeições, seus ruídos, suas cores saturadas, nos lembra que a memória nunca é limpa. Nunca é exata. Mas ainda assim é tudo o que temos.
O que Aftersun constrói é raro. É delicado. É profundo. É o tipo de filme que te acompanha depois do fim. Um filme que você guarda. Um filme que te guarda.
No fim, a pergunta que o filme deixa não é o que aconteceu com Calum. A pergunta é: o que acontece com a gente quando entendemos, tarde demais, aquilo que já passou?

Trailer:
⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️















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