Xangô Alapalá — Zeferina e Mateus Aleluia transformam fogo em memória viva no mês da Consciência Negra
- Marcello Almeida
- há 18 horas
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Há músicas que abrem caminhos. E há músicas que lembram quem, de fato, abriu os caminhos antes de nós

Lançada em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, “Xangô Alapalá” é mais do que uma faixa inédita. É um gesto de afirmação, cura e continuidade, uma dessas obras que parecem atravessar o mundo antes de chegar aos nossos ouvidos. O encontro entre Zeferina, uma das vozes mais luminosas da nova música preta brasileira, e Mateus Aleluia, griô maior da cultura afro-brasileira, tornou-se um território onde o sagrado e o contemporâneo caminham juntos. Hoje, já passados cinco dias do lançamento, a canção segue reverberando como um toque de chamado: quem escuta, sabe.
No centro da obra está Xangô, orixá do fogo, do trovão e da justiça. A música não o invoca apenas como figura simbólica, mas como força ativa, presença viva capaz de abrir clareiras dentro da experiência humana. Zeferina diz com precisão aquilo que a faixa encarna:“Xangô não é cego: ele vê, sente e corrige o mundo.” E ao afirmar isso, ela transforma a própria canção em oferenda, um pedido para que o olho da justiça ancestral não se feche, especialmente em um país que ainda organiza sua desigualdade sobre as marcas do passado.
Um nascimento guiado por sinais
O caminho até essa gravação é, por si só, uma narrativa espiritual. Zeferina conta que a música surgiu como quem recebe um recado: impulsos, sinais, presenças. A partida de um amigo querido, a energia dos ancestrais que se mostram em pequenas frestas do cotidiano, a sensação de que a música chegou antes mesmo de ser escrita.“Era como se eu recebesse um presente. A energia me dizia: grava essa música”, relembra.
E foi assim, guiada por intuições e encontros improváveis, que ela conheceu Mateus Aleluia Filho, responsável pelos sopros gravados em Cachoeira, na Bahia. O encontro se transformou em ponte: ele abriu as portas para que a música chegasse aos ouvidos de seu pai. Quando Mateus Aleluia ouviu, a resposta veio como sentença e bênção: “Essa música é o próprio orixá." Poucas frases selam tão bem o destino de uma obra.
O som como terreiro, o estúdio como passagem
A construção da faixa ganhou corpo nas mãos de Malka Julieta, produtora musical e multi-instrumentista que assina os arranjos, pianos, guitarras, teclados e batidas eletrônicas. Sua presença é decisiva porque conecta o sagrado afro-brasileiro com uma escuta contemporânea, livre, expansiva, corajosa, que amplia o alcance da música. É arte que respeita a ancestralidade sem fossilizá-la, fazendo-a respirar no presente.
A percussão de Rômulo Nardes adiciona chão, corpo, terreiro. Já os sopros de Mateus Aleluia Filho funcionam como vento ancestral que abre espaço entre mundos. O resultado é uma faixa que parece caminhar em duas direções ao mesmo tempo: para trás, honrando quem veio antes; e para frente, iluminando quem ainda virá.

O clipe como ritual de passagem
Dirigido por Daniel Fagundes e roteirizado por ele e Zeferina, o videoclipe amplia as camadas dessa ancestralidade. Ele mistura espaços urbanos com territórios simbólicos, como se o divino dividisse a mesma calçada que a gente pisa todos os dias. Há referências aos ciclos da vida, às presenças que permanecem mesmo depois da partida, e à força de uma memória que não se apaga.
É também um gesto político: lançar essa obra no Dia da Consciência Negra, data que celebra a resistência do povo preto e a figura de Zumbi dos Palmares, é afirmar que a arte pode ser instrumento de justiça quando reconhece sua própria raiz. E que a negritude viva, criadora, pulsante, segue inventando novas formas de existir apesar de tudo.
Uma canção que continua
Já é dia 25 de novembro, o país seguiu sua rotina, os ciclos giraram, mas “Xangô Alapalá” permanece acesa. É dessas músicas que não encerram no lançamento; elas continuam trabalhando, como reza forte que ainda ecoa depois do último toque do atabaque.
É sobre comunhão entre tempos, corpos e mundos. Sobre cantar para curar. Sobre transformar a arte em instrumento de justiça. Sobre lembrar que o fogo não destrói apenas, ele purifica.
E, acima de tudo, é sobre reconhecer que algumas canções não são feitas: são recebidas.












