Third, do Soft Machine: quando o rock perdeu as fronteiras
- Marcello Almeida

- 6 de set.
- 3 min de leitura
Atualizado: 7 de set.
Um álbum duplo de 1970 que transformou jazz, psicodelia e vanguarda em um só corpo vivo

No início da década de 1970, o rock vivia sua expansão máxima. O Black Sabbath inventava o peso, os Beatles assinavam sua despedida com Let It Be, o progressivo crescia em palcos cada vez maiores. Nesse cenário de excessos e promessas, a Soft Machine escolheu um caminho mais arriscado: abandonar de vez a psicodelia que marcara seu começo e se lançar numa imersão radical no jazz e na música eletrônica contemporânea. O resultado foi Third, um álbum duplo que se tornou divisor de águas — reverenciado pela crítica mais atenta, como o Village Voice, mas ignorado pelo público que buscava refrões fáceis.
Cada lado do vinil era um mundo próprio, quatro composições extensas que exigiam entrega do ouvinte. Duas assinadas por Mike Ratledge, uma por Hugh Hopper e outra por Robert Wyatt, mas todas atravessadas pelo espírito coletivo de improvisação e pela presença de músicos fundamentais da cena de Canterbury, como Elton Dean e Jimmy Hastings. O Soft Machine, que um dia fora banda de canções psicodélicas, já se via como um organismo aberto, uma plataforma para experimentações.
As peças de Ratledge se aproximavam do jazz fusion, mas não do tipo virtuoso que se veria em Weather Report ou Mahavishnu Orchestra. Aqui, a fusão era filtrada por loops de fita, padrões de teclado repetitivos e hipnóticos, uma construção quase minimalista. Slightly All the Time, por exemplo, parece respirar em ondas: os sopros de Dean e Hastings atravessam a melodia, criando diálogos que lembram tanto o free jazz quanto a música de câmara. Já Out-Bloody-Rageous levava o grupo ao território da eletrônica, antecipando em décadas a lógica dos drones e das camadas infinitas.
Hugh Hopper trouxe a monumental Facelift, construída a partir de apresentações ao vivo de 1970. É uma peça caótica, pulsante, que lembra de longe o peso de 21st Century Schizoid Man, do King Crimson, mas que logo se desdobra em múltiplas seções, com ritmos quebrados, colagens sonoras e explosões de improviso. Ali estava não apenas a marca de Hopper como baixista, mas também o prenúncio do que faria depois em carreira solo: um mergulho no experimentalismo.
E então havia Moon in June, a contribuição de Robert Wyatt. Diferente das demais, trazia vocais e letras irônicas, quase satíricas, contrapondo-se à grandiloquência típica do rock progressivo da época. A faixa nasceu de ideias de 1967, registradas em demos com Giorgio Gomelsky, e carregava esse ar de nostalgia psicodélica. Mas em Third ganhou corpo novo: longos trechos instrumentais, atmosferas insólitas, melodias que oscilam entre o lúdico e o melancólico. Wyatt parecia rir do rock enquanto ainda fazia parte dele.
O disco não era exatamente rock — mas expandia seus limites até regiões desconhecidas. Era música que não se deixava aprisionar em gêneros: jazz, erudito, improvisação livre, psicodelia e eletrônica conviviam sem hierarquia. E, o mais impressionante, sem soar autoindulgente. Era ousadia com rigor, liberdade com disciplina.
Na época, muitos se sentiram afastados. O álbum não oferecia portas de entrada fáceis, e quem quisesse compreender precisava atravessar suas longas paisagens sonoras. Por isso mesmo, é comum dizer que a verdadeira introdução ao Soft Machine são os dois primeiros discos, mais acessíveis. Mas, para quem já entrou nesse universo, Third é a revelação definitiva.
Cinquenta e cinco anos depois, ele continua soando desconcertante. Ainda desafia o ouvinte, ainda pede paciência, ainda resiste a qualquer formato de consumo rápido. É, em essência, um disco que não envelhece — porque nunca pertenceu totalmente ao seu tempo.
O Soft Machine pode não ter lotado estádios ou dominado rádios, mas com Third escreveu um dos capítulos mais ousados da música do século XX. Ali, o rock deixou de ser apenas rock. Ali, as fronteiras se dissolveram.
E talvez seja por isso que, mais do que um álbum, Third é um portal.
















Comentários