Por que ainda ouvimos People Have the Power, de Patti Smith
- Marcello Almeida
- há 11 horas
- 3 min de leitura
Porque nada muda sozinho, e o mundo começa no gesto de cada um de nós

“People Have the Power”, lançada por Patti Smith em 1988 no álbum Dream of Life, continua sendo uma das mais belas contradições da música: é ao mesmo tempo simples e monumental. Seu primeiro verso nasce do silêncio — I was dreaming in my dreaming — e, ainda assim, carrega fôlego suficiente para mover uma geração inteira. Patti entendia que nada começa nas ruas; tudo começa dentro. A revolução, antes de ser gesto, é imaginação.
Mas o que faz essa música atravessar décadas não é apenas a sua mensagem explícita. É aquilo que pulsa por baixo dela, uma espécie de insistência moral, um lembrete de que o mundo não se sustenta sem o esforço conjunto de quem o habita. Quando Patti repete people have the power, ela está dizendo que nenhuma estrutura é inevitável. Que nenhum destino está selado. Que a transformação depende do comum e não do excepcional.
E é justamente aí que a canção se expande para além do seu tempo. Porque ao falar de poder nas mãos das pessoas, ela também sugere, sem nomear, sem apontar, que existe um desequilíbrio profundo na forma como esse poder é distribuído. Há vidas que carregam mais riscos do que outras, corpos que atravessam o mundo com mais feridas, presenças que são desvalorizadas, silenciadas, interrompidas. Patti não diz isso explicitamente, mas algo em sua voz abre espaço para essa leitura: a de que um mundo justo só é possível quando todas as vidas são protegidas, quando toda existência encontra dignidade, quando ninguém é reduzido ao medo.
A música opera nesse território delicado: o da esperança que conhece a violência, mas não se curva a ela. O da utopia que não ignora as rachaduras, mas insiste em reconstruí-las. Quando ela canta to redeem the work of fools, há uma crítica velada aos sistemas que falham, às decisões tomadas no alto que não enxergam quem vive no chão. E quando ela afirma where there were deserts, I saw fountains, o verso funciona como um gesto de restituição, a imagem de um mundo que poderia florescer, se fosse cuidado.
Esse cuidado é a grande lacuna social que a música denuncia sem dizer. Porque “People Have the Power” não é um hino de grandiosidade; é um hino de responsabilidade. Ele nos pergunta que tipo de mundo estamos sustentando, e para quem. Ele nos convoca a olhar para aquilo que foi historicamente negligenciado: as vozes abafadas, os corpos expostos, as vidas que nunca deveriam ter sido colocadas em risco.
Mas Patti não oferece respostas. Ela oferece direção.We can turn the world around. Podemos virar o mundo do avesso — e talvez essa seja a frase mais honesta da canção, porque não há promessa de facilidade, apenas a lembrança de que a rotação do mundo não é fixa. Nada está condenado a ser para sempre o que é agora.
Ao final, o que permanece é essa visão poderosa de coletividade. A música sugere que a força que muda a história não é a força individual, mas a soma silenciosa das pequenas resistências, das pequenas recusas, das pequenas proteções. É a consciência de que um futuro possível nasce quando a dignidade é compartilhada, não seletiva.
E é nessa camada mais fina, quase invisível, que “People Have the Power” também fala dos que precisam ser defendidos, dos que precisam ser vistos, dos que carregam peso demais nas costas. Não precisa dizer; basta insinuar. A música sabe que quem vive o mundo entende.
Ainda ouvimos esta canção porque ela nos devolve uma coisa que o tempo tenta corroer: a certeza de que o poder existe, sim, mas só floresce quando é cuidado, quando é plural, quando ninguém fica para trás. Patti transforma essa certeza em canto. E nós, décadas depois, seguimos aprendendo a escutá-la.
The Woman Has the Power.











