Patti Smith cavalgou o caos e fez de ‘Horses’ uma revolução poética
- Marcello Almeida
- 18 de jun.
- 3 min de leitura
Um disco que não pede licença — ele atravessa a alma e deixa marca

Patti Smith e os cavalos em chamas da liberdade.
Quando ‘Horses’ foi lançado, o mundo nunca mais voltou ao estado anterior. A arte virou incêndio. A mulher virou rito. A música virou poesia armada.
Tem discos que são como portas: você passa por eles e sai do outro lado diferente, latejando, atravessado por algo que não tem nome. Horses é isso. Um chamado. Um portal. Um assombro. Um trovão que rasga o tédio da década de 70 com a fúria de uma mulher que se recusou a ser moldada. Patti Smith não pediu passagem — ela arrombou.
O disco nasceu no dia 10 de novembro de 1975, mas soa como se tivesse sido parido no começo do mundo e lançado em loop eterno no futuro. Uma estreia que não apenas marcou uma era, mas criou uma linguagem. Porque Horses não é só música — é literatura, revolta, elegância e anarquia. É poesia punk. É pulsação.
A capa já é um manifesto. A camisa branca amarrotada, o blazer jogado no ombro, o olhar que atravessa o tempo — Patti ali está nua de afetação, vestida apenas da sua própria existência. E quem capturou essa imagem não foi um fotógrafo qualquer: foi Robert Mapplethorpe, seu grande amor, seu espelho artístico, sua alma gêmea em preto e branco. A foto não foi produzida. Foi sentida. Como tudo no disco.
Patti veio de Nova Jersey — meio punk, meio monja, meio andarilha. Cresceu entre a rigidez religiosa e a revolta silenciosa. Não se encaixava. Não baixava a cabeça. Se alimentou de Rolling Stones, Hendrix, Dylan, Velvet Underground. E do caos fez arte. De sua inquietação, fez templo. Ela não foi cantar: ela foi invadir o palco da história com palavras como punhais, com poesia saindo das vísceras.
Gloria é a abertura — e também a detonação. “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus.” A frase que incendeia o Velho Testamento e inaugura o evangelho segundo Patti. Uma reinterpretação profana de Van Morrison que vira orgasmo, rito pagão, dança de exu na sarjeta sagrada do punk.
A guitarra de Lenny Kaye não acompanha — ela guia. Crua, suja, elegante. John Cale, vindo do Velvet, produz o disco como quem mistura ácido com vinho tinto. A atmosfera é ao mesmo tempo ritualística e suja. Em Redondo Beach, Patti narra uma tragédia com voz quase doce, quase desumana, como se estivesse segurando a mão da morte e acariciando seus cabelos. Em Kimberly, tudo vira transe: há algo de Doors, algo de Lou Reed, algo que escapa de todos os nomes. E Break It Up, que ela escreveu após um sonho com Jim Morrison preso em gelo, é literalmente Patti quebrando as estruturas da forma, da estética, do gênero, do gênero musical e do gênero humano.
Mas é em Land que tudo se dilui em sangue e feitiço. É o centro nervoso do disco. Uma história dentro de uma música dentro de um poema dentro de um grito. Johnny é violentado, dança, delira. E a gente ouve como quem testemunha uma possessão. A música vira espasmo. E o espasmo vira arte.
Patti Smith não só inventou uma nova forma de cantar. Ela inventou uma nova forma de existir dentro da música. Trouxe para o punk uma sofisticação suja, uma delicadeza brutal, uma inteligência animalesca. Fez do feminino um grito. Fez do grito um poema. Fez do poema uma revolução.
Depois de Horses, nunca mais foi possível tratar o rock do mesmo jeito. Ela influenciou o REM, o Talking Heads, o Nirvana, o punk inglês, o pós-punk, o indie, o hardcore intelectualizado. Mas o mais importante: ela deu à arte um novo tipo de liberdade. A liberdade de ser crua, erudita, suja e sagrada ao mesmo tempo.
Horses não envelhece. Ele galopa. Ele te atropela. Ele te acorda. E quando você dá play, sente: Patti não canta pra entreter — ela canta pra libertar. E pra incendiar o que precisa virar cinza.

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