É formidável como Celine consegue alinhar os laços afetivos entre os personagens para traçar uma linha de pensamento voltada para a condição humana.
É incrível como o cinema possui a capacidade de se misturar entre o real e imaginário, despertando inúmeras emoções e sentimentos, e fazendo você relembrar sua vida inteira diante da magia exposta em uma tela. Isso não ocorre frequentemente, mas de tempos em tempos nos deparamos com obras como "Aftersun", "Close", "Encontros e Desencontros", filmes que, de certa maneira, conseguem nos transportar para outra dimensão ou simplesmente mudar nossa visão sobre algo em nossa vida.
O belo e cósmico "Past Lives" (Vidas Passadas), estreia afetuosa da cineasta Celine Song, lançado pela A24, consegue transmitir tudo isso de uma forma tão natural, envolvente e verdadeira, daqueles filmes em que você se pega viajando por suas memórias durante muitas cenas e diálogos muito bem construídos e adaptados pelo roteiro conciso de Celine.
Na trama acompanhamos a história de Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo), dois grandes amigos (apaixonados) de infância, que são separados quando a família de Nora emigra da Coreia do Sul. Vinte anos depois, eles se encontram novamente em Nova York para uma semana crucial, explorando conceitos de destino, amor e as decisões que moldam uma vida.
"Past Lives" é um grande romance contemporâneo sobre nossas idas e vindas, nossas escolhas e decisões, nossos encontros e desencontros que moldam os laços em nossas vidas e relações. E isso fica evidente desde o início, com a bela e profunda canção de Leonard Cohen, "Hey, That's No Way To Say Goodbye", que se encaixa perfeitamente como uma poesia na narrativa que encontraremos pela frente.
É formidável como Celine consegue alinhar os laços afetivos entre os personagens para traçar uma linha de pensamento voltada para a condição humana. Talvez isso explique todo o sucesso e aclamação do longa. Os detalhes e a maneira como foram introduzidos na história tornam o espectador parte daquilo. Você, em algum determinado momento da vida, viveu algo semelhante; se ainda não, vai viver.
Outro ponto interessante no filme é a fotografia, que consegue capturar primorosamente a beleza de cidades solitárias. As tomadas de câmera parecem abraçar e afagar esses cenários, que ajudam a construir os encontros e desencontros de Nora e Sung, dois mundos diferentes ligados por uma vida no passado. Nora, agora escritora, e Sung, engenheiro levando sua vida normal. Enquanto Sung leva sua vida na Coreia ainda morando com os pais, ela já tem uma carreira em ascensão e se casou com um escritor também, muito bem interpretado por João Magaro, uma peça central desse encontro de vidas passadas.
O filme mergulha nos singelos sentimentos presentes nos relacionamentos em diferentes fases da vida, desde as paixões na infância até a suposta segurança da idade adulta. É um tipo de filme rico em sutilezas que estimula a autorreflexão e, ao mesmo tempo, oferece entretenimento sem perder o seu foco. Através de dois personagens, a obra ilustra como os relacionamentos, sejam plenos ou não, acabam tendo um impacto significativo em nossas vidas.
Quantas vezes você já se perguntou se um amor era verdadeiro? Como reconhecer essas nuances no outro, ou em você mesmo? Celine responde a essas indagações da vida com momentos ternos, mensurados por olhares duradouros e profundos nos olhos um do outro, em conversas que duram horas e mais horas, e você nem percebe o tempo passar. Quem sabe o amor pode estar nas pequenas coisas, como quando você faz algo junto de alguém, e aquele momento parece ser mais profundo e especial do que parece ser. Ou simplesmente quando você está ali deitado na cama ao lado da pessoa, discutindo os planos para o jantar. A diretora consegue introduzir situações do dia a dia de maneira inteligente, emocionante, às vezes tristes, mas nunca denso demais. Isso torna "Past Lives" grande.
Chega até a ser surpreendente saber que este é o primeiro longa de Celine. O filme não deixa de ser uma verdadeira aula de narrativa, e isso pode muito bem ter sido influenciado pelo fato de Song ter sido dramaturga antes de se aventurar no cinema. Aqui, ela direciona todo o seu cuidado e olhar para Nora e Sung, fazendo o mundo ao redor deles desaparecer quando estão juntos. Existe uma química especial e bela entre eles. Cada olhar nostálgico, chamada de vídeo tarde da noite, e-mail não enviado ou sorriso entusiasmado conta a história da evolução dos laços que foram criados quando ainda eram crianças. No roteiro de Song, o amplo diálogo dos personagens emociona o público não através de aberturas dramáticas, mas por meio de conversas realistas que expõem emoções vulneráveis que explodem no peito.
"Past Lives" merece toda a comoção e aclamação que recebeu, tanto da crítica especializada quanto do público. Celine consegue criar cenários envolventes, diálogos inteligentes e faz um ótimo uso da trilha sonora, indo de Cohen a Sharon Van Etten. Além disso, ela demonstra cuidado ao desenvolver a relação dos personagens ao longo dos anos, transformando anos de silêncio em euforia e alegria quando se encontram novamente. É como sentir aquela sensação de algo que você ainda não viveu e talvez nunca viva, desejos e vontades levados como castelos de areia pelo vento. Nem sempre podemos viver o que queremos; às vezes, certas coisas tiveram seu tempo no passado. Portanto, podemos apreciar as lembranças de nossas vidas passadas à medida que reconhecemos a perda das coisas da infância.
Past Lives
Vidas Passadas
Ano: 2023
Gênero: Drama, Romance
País: EUA
Direção: Celine Song
Roteiro: Celine Song
Elenco: Greta Lee, Teo Yoo, John Magaro
Duração: 106 min
Classificação: 14 anos
NOTA DO CRÍTICO: 8,5
Onde ver:
Past Lives está previsto estrear nos cinemas do Brasil em 15 de fevereiro de 2024.
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