O The Smiths em ‘The Queen Is Dead’: a beleza amarga do desencanto
- Marcello Almeida
- há 15 horas
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O silêncio da rainha, o grito de uma geração

Há discos que não envelhecem — não por serem modernos, mas por serem eternamente deslocados do tempo. The Queen Is Dead é um desses. Lançado em 1986, no auge da era Thatcher, ele não apenas capturou a angústia e a ternura de uma juventude desiludida: ele a transformou em forma — em som, em palavra, em lamento pop. O The Smiths, já naquela época, era mais do que uma banda. Era uma linguagem secreta entre os deslocados.
A realeza morria, a monarquia se tornava caricatura, o rock ganhava roupa de funeral. Mas nunca soou tão vivo.
Formado por Morrissey, Johnny Marr, Andy Rourke e Mike Joyce, o The Smiths emergiu no início da década como uma anomalia gloriosa: guitarras que dançavam como pássaros, letras que cortavam como navalhas e uma entrega vocal que parecia vir de um espírito encarnado em poeta trágico. Se a década de 1980 foi marcada pela ostentação estética e pela opulência sonora, os Smiths caminharam na contramão: fizeram da melancolia um abrigo, da ironia um escudo, da delicadeza um gesto radical.
Mas foi em The Queen Is Dead que tudo se encaixou. Um disco que parece ter sido escrito nas entrelinhas do desencanto britânico e gravado no porão da alma de Morrissey. Um álbum que, ao mesmo tempo em que critica o sistema, a monarquia, a mídia e a moral, celebra — com uma beleza quase suicida — o fracasso, a solidão, a dor de amar.
Uma beleza que sangra
A faixa-título abre com um trecho do hino da Primeira Guerra, “Take Me Back To Dear Old Blighty”, como se a própria Inglaterra já entrasse em cena em ruínas. É um início sarcástico, um teatro de guerra sentimental. Depois, entra Marr com guitarras alucinadas, enquanto Morrissey despeja veneno com graça e deboche: “Her very Lowness with her head in a sling / I’m truly sorry but it sounds like a wonderful thing”. A monarquia vira farsa, a identidade nacional é subvertida com ironia. Como se os Sex Pistols tivessem estudado literatura e descoberto a tristeza.
No entanto, o disco não se sustenta só em crítica política. Ele é, sobretudo, uma ode ao humano que sofre. “I Know It’s Over” é uma das mais dolorosas declarações de derrota que já se ouviu em um vinil. Morrissey canta como se estivesse à beira da extinção: “It’s so easy to laugh, it’s so easy to hate / It takes strength to be gentle and kind”. É ali que o disco alcança a sua maturidade emocional: onde o niilismo vira ternura, onde o sarcasmo dá lugar a um desespero mudo, sincero.
O lirismo dos deslocados
Johnny Marr nunca foi tão celestial quanto em “There Is A Light That Never Goes Out”. É o momento onde o álbum se abre ao sublime. Violinos, guitarra e dor se encontram como num filme do Truffaut tocado por crianças de Manchester. “To die by your side is such a heavenly way to die” — e o romantismo fúnebre se eterniza. Não há ironia aqui. Só um desejo quase infantil de desaparecer ao lado de alguém, de fazer da morte um gesto de entrega. Morrissey escreve como se cantasse o testamento de uma juventude que não acredita mais no futuro, mas que ainda sonha com alguma espécie de amor.
O que dizer então de faixas como “Bigmouth Strikes Again” (uma joaninha pegando fogo nas mãos de Joana d’Arc) ou “Frankly, Mr. Shankly” (a frustração com patrões, dinheiro, fama)? Todas elas brincam com a linha tênue entre o riso e o pranto. Marr constrói paredes de som com acordes límpidos e imprevisíveis. Rourke e Joyce seguram tudo com uma precisão que muitas vezes passa despercebida — mas é fundamental. Sem eles, o disco não voaria.
Um disco feito para não passar
A capa — com Alain Delon estirado, em um fotograma do filme Terei o Direito de Matar? — já anuncia a contradição estética: morte e beleza, glamour e decadência. É esse o espírito do álbum. Não se trata de nostalgia. Trata-se de permanência. The Queen Is Dead não quer voltar ao passado. Ele quer viver para sempre no mesmo lugar: no coração dos que nunca se encaixaram.
Renato Russo caiu de amores por essa banda. E não foi por acaso. O Brasil dos anos 80 também era feito de jovens românticos com raiva no peito. Os Smiths ofereceram um espelho: não para se admirar, mas para se reconhecer nos estilhaços. Ainda hoje, ouvir esse disco é como revisitar uma dor que não passou, mas aprendeu a dançar. Ele não soa moderno. Ele soa necessário.
E quando tudo parecer fora de lugar, basta voltar a “There Is A Light That Never Goes Out”. Ali está o farol. O consolo. A fé secreta dos melancólicos. A luz que nunca se apaga.

⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️