O som da sombra: como “The Drift”, de Scott Walker, revive o expressionismo no século XXI
- Marcello Almeida
- há 7 dias
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Ninguém voltou desse lugar o mesmo

Essa é daquelas obras esquecidas, incompreendidas e indigestas. Esse disco não quer sua atenção; ele quer seu silêncio. E, depois, sua alma. The Drift (2006) é o que aconteceria se F. W. Murnau pudesse gravar um álbum, se os corredores tortos de O Gabinete do Dr. Caligari tivessem microfones, se a alma de Nosferatu invadisse um estúdio com paredes negras e nenhuma janela.
Em 2006, enquanto o mundo inteiro dançava ao som de Arctic Monkeys, Gnarls Barkley e o renascimento retrô do indie, Scott Walker lançava um disco que parecia vir de um lugar onde a música havia morrido — e o que restou foi só o som do luto. The Drift é puro cinema expressionista em forma de som. Não pelas referências diretas, mas pela atmosfera. Pelo uso da distorção como linguagem. Pela recusa em representar o real — e a escolha de deformá-lo até que ele confesse o que escondia.
Walker, que nos anos 60 era um ídolo teen com os Walker Brothers, fez o movimento oposto de todo artista que envelhece: ao invés de buscar relevância, ele cavou mais fundo no desconhecido. Ele não envelheceu — ele se desfez. The Drift é o som desse processo.
A escuridão como Luz
No expressionismo alemão, os cenários eram desenhados com ângulos impossíveis, as sombras eram personagens, e o horror não vinha do monstro, mas do homem. Nesse disco, é como se fosse a mesma coisa: cada faixa é um cenário claustrofóbico, lacunas escuras, onde a voz de Walker oscila entre sussurro e agonia, cercada por cordas que não embalam — estrangulam.
Em “Jesse”, por exemplo, a parte estrumental parece um quarto sem portas. O som pulsa como se estivesse tentando sair de um corpo fechado. A letra mistura Elvis Presley, terrorismo e desespero cósmico. Walker não canta: ele interpreta uma febre.
“Clara” é puro cinema de horror político: a narrativa da execução de Mussolini e Clara Petacci se desenrola como uma performance ritual. A orquestra soa como um prédio desabando em câmera lenta. Os silêncios cortam mais que os sons. E “Buzzers”, com seus ruídos, sirenes e vozes deformadas, poderia ser a trilha sonora perdida de M – O Vampiro de Düsseldorf.
O álbum foi ignorado pelo público. O mundo não estava (e talvez nunca estará) pronto para um disco que não se importa em agradar. Que não se vende, que não se explica. Scott Walker não queria fazer parte da história da música. Ele queria ser um furo nela. Uma rachadura.
E conseguiu. O disco virou uma espécie de segredo sussurrado entre artistas experimentais, compositores ousados e músicos que não se contentam com o previsível. David Bowie, antes de morrer, chegou a dizer que Scott Walker era “a pessoa mais corajosa da música britânica”. E Thom Yorke, do Radiohead, já admitiu que os caminhos mais sombrios da banda nasceram da admiração por discos como esse.
O expressionismo sem câmera

A grande sacada do disco é que ele usa os mesmos princípios do expressionismo, mas aplicados ao som:
• A distorção da realidade como meio de expressão emocional
• A atmosfera sufocante como linguagem narrativa
• A estética do pavor como denúncia social
Scott Walker não descreve o horror — ele te faz habitá-lo. E isso é profundamente expressionista. Ele cria espaços onde a lógica implode, onde o medo tem textura, onde a arte se torna um espelho rachado.
O cineasta do som
Walker compôs The Drift como quem dirige um filme. Cada faixa tem mise-en-scène. Tem roteiro. Tem miseéria. Ele controla o tempo como Tarkovski. Isola o som como Dreyer. Pinta com ruídos como Murnau pintava com sombra. É arte que não suplica por atenção — exige rendição. E por isso mesmo foi ignorada, como todo grande filme que veio antes do seu tempo.
É mais do que um disco. É um filme que ninguém ousou filmar. E como toda grande obra expressionista, ele não quer que você entenda. Quer que você sinta. E se possível, tema.
Walker morreu em 2019. E deixou para trás uma discografia que vai ser redescoberta como uma caverna — aos poucos, por aqueles corajosos o bastante para entrar sem lanterna. The Drift é seu ponto mais fundo. Um grito abafado que, uma vez ouvido, nunca mais sai da cabeça.
Não é um disco para tocar em reuniões de amigos. Não é trilha para momentos felizes. É uma sentença. Um ritual. Um confronto com o que há de mais incômodo na arte — e talvez em nós mesmos.
Ouça com fones. À noite. Sozinho. E veja se volta o mesmo.
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