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O Eternauta: Ricardo Darín no olho da tempestade que colapsa a América Latina

Uma tempestade apaga a cidade — mas reacende tudo que tentaram nos fazer esquecer

O Eternauta
Imagem: Reprodução/Netflix

Há obras que resistem ao tempo. Outras, resistem pelo tempo. O Eternauta, nova série da Netflix baseada na lendária HQ argentina de Héctor Germán Oesterheld e ilustrada por Francisco Solano López, não é apenas uma distopia sobre alienígenas e nevascas tóxicas: é um grito sufocado contra o apagamento da memória. Uma obra que fala de ontem, mas com olhos cravados no hoje.



No Brasil, a HQ foi publicada num timing perfeito pela editora Pipoca & Nanquim, reacendendo o interesse por essa obra essencial justamente no momento em que sua adaptação chega ao streaming. Quem quiser mergulhar ainda mais fundo no universo da série, tem ali um material de leitura impactante, denso e absolutamente necessário.


Publicada originalmente entre 1957 e 1959, em plena ebulição política na Argentina, a história é ambientada em Buenos Aires, onde uma nevasca letal anuncia a chegada de uma invasão silenciosa. A partir disso, a cidade vira zona de guerra. Um grupo de sobreviventes liderado por Juan Salvo (Ricardo Darín) tenta resistir, não apenas aos invasores, mas à lógica invisível do controle, da obediência, da rendição.


O que parece ficção científica logo se revela uma metáfora brutal: O Eternauta é, na verdade, um tratado sobre o autoritarismo e seus tentáculos. O inimigo não vem do céu — ele já está no chão. Invisível, difuso, travestido de “ordem”. E é aqui que a série, com direção de Bruno Stagnaro e protagonismo de Ricardo Darín, encontra sua verdadeira força: a fidelidade ao espírito da HQ original, que se impõe como denúncia e legado. A arte intensa e densa de Solano López também vive nos enquadramentos da adaptação — o traço virou linguagem audiovisual sem perder sua alma.


Crédito: Netflix
Crédito: Netflix

Mas há mais. A série não se ancora só na crítica política. Ela reverbera também em nossas sensibilidades mais recentes. O isolamento forçado, o medo do ar, as casas transformadas em fortalezas — tudo isso nos arremessa de volta à pandemia da Covid-19. Aquela mesma sensação de um inimigo invisível, espalhado pelo vento, que nos obrigou a reaprender o valor do outro, do coletivo, da escuta, da solidariedade. O Eternauta nos lembra que sobreviver sozinho é quase uma condenação — e que resistir, mesmo em silêncio, é sempre um ato coletivo.



Há, ainda, um charme particular nesse colapso do mundo moderno.A série se passa no presente, num tempo absolutamente conectado, digital, automatizado — mas a nevasca muda tudo. Em questão de minutos, celulares perdem sinal, carros deixam de funcionar, a cidade paralisa. A tecnologia falha. E com ela, desaba a ilusão de controle. É aí que o analógico ressurge, não como estética vintage, mas como tática de sobrevivência. Rádios antigos, mapas físicos, lanternas, engenhocas improvisadas — tudo feito com as mãos, com engenho, com urgência.


A série não romantiza esse retorno: ela escancara o quão despreparados estamos para viver sem o digital. Talvez isso nos provoque mais do que imaginamos. Estamos tão dependentes das telas que esquecemos como agir quando a tomada sai da parede. O Eternauta confronta essa fragilidade — e, ao mesmo tempo, aponta onde ainda pulsa alguma resistência.


E o que essa história diz a nós, brasileiros, em 2025?


Tudo, meu caro leitor.


Vivemos um tempo em que o autoritarismo não precisa mais marchar fardado. Ele caminha sorrindo, vestido de nostalgia. Ganha curtidas, discursos de palanque, reverência em podcasts. A censura voltou, mas agora se chama “opinião”. A violência ganhou filtro. O fascismo se reapresenta como “resgate de valores”. E muita gente, iludida, pede de volta o chicote como quem pede colo.


A obra se torna, assim, um espelho incômodo. Mostra que o horror não começa com tanques, mas com o silêncio. Com o conformismo. Com a ideia de que “não é comigo”. Como na série, a tempestade chega sorrateira — e quando vemos, já estamos soterrados.


HQ de O Eternauta/Reprodução
HQ de O Eternauta/Reprodução

E a história por trás da história amplia ainda mais essa carga simbólica. Oesterheld — o criador desse universo — e suas quatro filhas foram sequestrados e desapareceram durante a ditadura militar argentina. Nunca mais foram encontrados. O autor que ousou transformar ficção em denúncia foi engolido pela mesma máquina que combateu em sua obra. Não é coincidência: é consequência. Sua ausência grita em cada página, em cada frame, em cada silêncio da série. E quando essa narrativa histórica se encontra com a figura de Ricardo Darín — talvez o maior ator argentino em atividade, símbolo de consciência política e integridade artística — O Eternauta se torna algo maior. Mais que uma série. Uma cicatriz. Um aviso. Um monumento.


Talvez por isso O Eternauta seja a obra audiovisual mais importante produzida na Argentina em muitos anos. Uma viagem no tempo que nos devolve àquilo que não podemos esquecer — sob risco de repetir. Uma história sobre o passado que fala, com precisão cirúrgica, do presente. E que sussurra, nas entrelinhas: ainda dá tempo.

Crédito: Netflix
Crédito: Netflix

O Eternauta

El Eternauta (1ª Temporada)


Ano: 2025

Direção: Bruno Stagnaro

Duração: 325 min

Gênero: Ação, Ficção Científica, Drama

País: Argentina/EUA

Elenco: Ricardo Darín, Ariel Staltari, César Troncoso, Carla Peterson

Onde ver: Netflix

NOTA DO CRÍTICO: 8,5

Trailer:



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