Dias Perfeitos — Wim Wenders e a beleza do simples
- Marcello Almeida

- 6 de out.
- 3 min de leitura
Há filmes que não se assistem, se atravessam. “Perfect Days” é um deles

Como seria um dia perfeito pra você?
Essa pergunta fica rondando, quieta, como quem observa de longe o personagem principal de Dias Perfeitos (Perfect Days), o mais recente filme de Wim Wenders. Uma Tóquio que respira arte, rotina, poesia e solidão. Um retrato da vida moderna, e das tentativas de permanecer humano dentro dela.
Wenders não tem pressa. Ele filma o silêncio como quem escreve um poema. E o que parece ser apenas o cotidiano de um zelador se torna uma espécie de oração, dessas que não se dizem, só se vivem. Há uma delicadeza estranha em tudo, uma leveza que desafia a pressa, o barulho, o imediatismo.
O protagonista, Hirayama, interpretado com uma alma quase mística por Koji Yakusho — trabalha limpando banheiros públicos. Só isso. E, ao mesmo tempo, tudo. A câmera o segue de perto, mas sem invadir, como se respeitasse o mistério da sua paz. Ele ouve Lou Reed, The Kinks, Patti Smith. Tira fotos de árvores, lê livros gastos. Vive um tempo que o mundo esqueceu. Esse é aquele tipo de filme que consegue cativar e prender a atenção do espectador durante suas duas horas; você vai estar diante de um drama honesto sobre as coisas belas da vida cotidiana.
Num tempo em que tudo é digital, imediato, descartável, Hirayama parece um intruso — ou talvez um sobrevivente. Enquanto o mundo corre para postar, registrar, compartilhar, ele apenas vive. Sem feed, sem pressa, sem prova. Existe algo de revolucionário nessa calma, nesse modo analógico de existir. Hoje tudo é feito para ser consumido e esquecido em segundos: as músicas, as imagens, até as pessoas. O filme, então, soa quase como um protesto silencioso. Um lembrete de que a vida não precisa ser exibida para ser sentida.
Ele não fala muito. E talvez por isso o filme fale tanto. Porque o silêncio aqui é verbo.
As músicas dizem o que ele não diz. E cada pausa, cada olhar, carrega mais significado do que qualquer diálogo ensaiado. Wenders entende o poder do simples. Entende que há beleza em repetir os gestos, dia após dia, como se o mundo ainda pudesse ser salvo por uma rotina bem vivida. Hirayama nos mostra que é possível encontrar a paz e alegria com tão pouco, mas no fundo Wenders sabe e compreende a cultura japonesa e sua busca constante pela forma de vida adequada, onde até as tarefas mais triviais devem ser realizadas com perfeição.

Mas quem é Hirayama, afinal? Um homem fora do tempo? Um sobrevivente do excesso? Ou apenas alguém que descobriu que felicidade não é correria, é presença? Talvez seja tudo isso. Ou nada disso.
A obra é uma espécie de espelho. Mostra o que a gente perde enquanto corre. E talvez seja esse o ponto: Dias Perfeitos não fala sobre perfeição, fala sobre aceitação. Sobre entender que a vida é feita de pequenas imperfeições que, juntas, formam algo bonito.
A fotografia de Franz Lustig é quase um personagem à parte. Cada enquadramento parece feito à mão, como se Wenders quisesse nos ensinar a ver de novo — ver o que já não vemos. O reflexo da luz no espelho, o som de uma vassoura, o vento atravessando as folhas.
Em uma das cenas mais bonitas, Hirayama está na van, olhando o horizonte, e Nina Simone canta Feeling Good. Ele sorri, com os olhos marejados. É pouco. É tudo. Wenders sempre foi esse cara do silêncio. Desde Kings of the Road até Asas do Desejo, ele filma o invisível. Mas aqui há algo mais: um sentimento de urgência serena, como se o filme dissesse “acorda, olha ao redor, ainda dá tempo”.
Porque Dias Perfeitos não é só um filme, é um lembrete. Talvez Wenders esteja nos dizendo, ou nos mostrando, até mesmo defendendo, não apenas uma nova maneira de olhar, mas também uma nova forma de viver a vida. Um lembrete de que a vida não acontece quando sobra tempo. Acontece agora, enquanto você lê isso, enquanto o café esfria, enquanto o sol atravessa a janela e você esquece de reparar. E talvez o segredo esteja aí: entre o ruído e o respiro. Entre o que se perde e o que ainda dá pra salvar. Entre o que é perfeito e o que simplesmente é.
Porque às vezes, viver um dia comum já é milagre suficiente. E é no silêncio das pequenas coisas que a vida, enfim, se revela.

⭐⭐⭐⭐⭐















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