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Clube da Esquina: a revolução silenciosa de Milton e Lô que tocou o mundo

Atualizado: há 4 dias

"Ah! Sol e chuva na sua estrada"

Milton e Lô
Imagem: Reprodução/Instagram

Há discos que não pertencem ao seu tempo, porque carregam dentro de si todos os tempos ao mesmo tempo. O Clube da Esquina é um desses raros acontecimentos: uma obra que não foi feita para 1972, nem para o Brasil da ditadura, nem para a juventude que a criou. É um disco que parece ter sido entregue ao mundo por uma força anterior à própria música, como se a terra, a chuva e a memória tivessem encontrado uma forma de cantar juntas. Ele não começa quando a agulha toca o vinil: começa no ar.



Antes de existir como som, o disco existiu como vida, e essa vida cabia inteira numa esquina. A esquina simples de Santa Tereza, onde meninos se encontravam para espantar o tédio, conversar sem rumo, rir de nada, inventar o mundo sem saber. Ali, entre postes, calçadas irregulares e o silêncio mineral de Belo Horizonte, surgiu uma espécie de rito invisível: Lô Borges, tímido e radiante, tocando Beatles no violão como quem abre uma clarabóia no concreto. Aquele gesto, quase banal, foi o primeiro universo. Foi ali que o Brasil começou a mudar sem perceber.


O país, do lado de fora, era dureza. Ditadura, censura, desaparecimentos, medo. Mas o Brasil interior, aquele que vive nas frestas, no canto da rua, no olhar que resiste, continuava inventando caminhos. E Minas, mais silenciosa que o resto do país, mais profunda, mais dada à introspecção, buscou sua liberdade onde ninguém procurava: na harmonia, na amizade, no canto que parecia vir de dentro das montanhas. Enquanto o regime endurecia, a música mineira aprendia a sussurrar o que não podia ser dito. O Clube da Esquina é a prova de que a poesia pode sobreviver até mesmo quando o mundo tenta sufocá-la.


Nada ali nasceu sozinho. Márcio Borges acendia versos como quem acende um cigarro na varanda. Wagner Tiso erguia catedrais inteiras com duas mãos. Novelli trazia o caminhar da cidade no peso do baixo. Toninho Horta deixava as notas deslizarem como pássaros. Beto Guedes soprava uma brisa que parecia vinda do interior. Robertinho Silva fazia a percussão conversar com a chuva. Ronaldo Bastos, Fernando Brant e Tavito davam palavras ao que ninguém sabia nomear. Era mais que um coletivo: era uma irmandade. Uma confraria secreta guiada por um sentimento que o Brasil ainda não sabia que tinha.


O disco carrega no peito o cheiro de terra molhada. O céu nublado de Minas pesa sobre cada arranjo, cada harmonia, cada lamento. Há algo de sagrado no modo como as notas se encontram, como se já tivessem sido escritas antes mesmo de serem tocadas. Ouvir o álbum em vinil, durante a chuva, é quase um sacramento. A agulha desce. O chiado aparece. A água cai. E, de repente, o tempo inteiro parece entrar pela janela. Não é nostalgia, é presença. É o passado se comportando como futuro diante dos nossos olhos.


E então vêm as músicas. “Tudo o Que Você Podia Ser” não é apenas uma abertura — é um chamado. É como se alguém colocasse a mão no nosso ombro e dissesse: “Enfrente.” “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo” traz uma luz que não envelhece, um frescor que continua jovem mesmo depois de 50 anos. “O Trem Azul” é o movimento eterno, o destino em marcha, o desejo de partir e a necessidade de ficar. “San Vicente” é estrada, fronteira, travessia. “Cravo e Canela” carrega uma sensualidade que nasce da própria vida, não do artifício. Cada faixa do disco é uma porta que se abre para um estado da alma.


E é por isso que o Clube da Esquina continua encontrando novas gerações, e continuará encontrando todas as que ainda virão. Ele não pede contexto, não exige conhecimento prévio, não depende de época. Quando um jovem de hoje ouve o disco, não sente distância: sente verdade. Sente o mesmo impulso ancestral que move qualquer pessoa que já desejou ser mais do que o mundo lhe permitia. O álbum fala da vida, da busca, da dor, do sonho, do amor, da perda, da liberdade — e tudo isso com uma universalidade que poucas obras no mundo alcançaram.



O Clube da Esquina atravessa décadas porque não tenta representar apenas um lugar, mas todos os lugares. Não tenta ser a voz de uma geração: tenta ser a voz do humano. Sua imortalidade não vem do mito, mas da sinceridade. Nada ali foi feito para ser grande — e é justamente por isso que tudo ali é gigante. O disco não pretendeu mudar o Brasil. Mas, de alguma forma misteriosa, mudou. Mudou o modo como o país se ouve, se percebe, se sonha.


Talvez Milton e Lô nunca tenham imaginado que estavam criando uma obra eterna. Talvez tudo tenha surgido de forma tão simples, tão despretensiosa, tão cotidiana, que ninguém percebeu o tamanho do milagre. Mas a arte tem dessas: às vezes escolhe seus mensageiros sem pedir licença. A esquina, aquela esquina comum de Santa Tereza, virou ponto cardeal de uma sensibilidade brasileira. Virou templo. Virou país.



Hoje, quando a chuva cai e o vinil gira, o Clube da Esquina não apenas soa, ele retorna. Ele respira. Ele nos lembra que, apesar de tudo, ainda existe beleza. Ainda existe afeto. Ainda existe caminho. E que, enquanto houver alguém capaz de encostar na janela, olhar a cidade molhada e deixar a música entrar, o Brasil não estará completamente perdido.


Porque há obras que passam, e há obras que permanecem. O Clube da Esquina não permaneceu: ele se eternizou. Beijos, Lô!



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