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Cinco anos após seu lançamento, Fetch the Bolt Cutters, de Fiona Apple, continua nos dizendo que quebrar as grades ainda é urgente

Cinco anos depois, a urgência permanece. E talvez doa ainda mais

 Fiona Apple
Imagem: Reprodução

Fiona Apple nunca foi sobre conforto. Desde o início, sua música sempre operou no campo da fricção, do incômodo necessário, da palavra que não pede permissão para existir. Fetch the Bolt Cutters, lançado em 2020, surge como o ponto máximo dessa postura. Um disco que não se explica. Ele se impõe.



Gravado em casa, longe de estúdios assépticos e de qualquer tentativa de polimento excessivo, o álbum soa como um organismo vivo. Panelas viram percussão, silêncios viram discurso, ruídos viram linguagem. Nada ali é decorativo. Tudo carrega intenção. Fiona não está interessada em agradar. Está interessada em dizer.


Revisitá-lo hoje, a partir do Brasil de agora, é um exercício quase doloroso. Porque o que o disco denuncia não diminuiu. Apenas se normalizou. A violência, o machismo estrutural, o silenciamento feminino, os traumas que atravessam gerações continuam operando em plena luz do dia. Fetch the Bolt Cutters não fala de um tempo específico. Ele fala de uma engrenagem que segue girando.


A força do álbum está justamente na recusa ao discurso óbvio. Fiona não escreve panfletos. Ela escreve a partir do corpo. Da memória. Do trauma. Da raiva que foi acumulada em silêncio por tempo demais. Suas canções não pedem empatia. Elas exigem escuta.


“I Want You to Love Me” abre o disco de forma quase enganosa. Um piano delicado, uma voz que parece buscar acolhimento. Mas logo fica claro que não se trata de uma canção romântica comum. É sobre vulnerabilidade em um mundo que pune quem se expõe. Sobre tentar amar sem se perder de si. Fiona canta como quem anda sobre cacos de vidro, consciente do risco, mas incapaz de recuar.


“Shameika” é um dos momentos mais devastadores do álbum. Não pela forma, mas pelo conteúdo que emerge sem dramatização excessiva. Bullying, abuso, memória, sobrevivência. Tudo narrado com uma naturalidade que assusta. Fiona revisita o passado não para se vitimizar, mas para entender como ele ainda reverbera no presente. O trauma não é um evento isolado. Ele se infiltra na vida adulta.


A faixa-título, “Fetch the Bolt Cutters”, funciona como um manifesto sem slogan. “Pegue os alicates” não é uma ordem literal. É um gesto simbólico. Um chamado à ruptura. À libertação de prisões invisíveis que muitas vezes são aceitas como parte da rotina. Fiona não romantiza a dor. Ela aponta a saída, mesmo sabendo que sair dói.



“Under the Table” talvez seja uma das canções mais diretas do disco. Um ataque frontal ao machismo cotidiano, aquele que se manifesta em relações aparentemente banais. “Me chute por debaixo da mesa o quanto quiser, não vou calar a boca.” Não há metáfora suficiente para suavizar o que está sendo dito. É confronto. É recusa. É sobrevivência.


E logo vai ficando claro, Fetch the Bolt Cutters sabota a lógica tradicional da canção pop. Não há refrões pensados para consumo rápido. As músicas mudam de andamento, se interrompem, retornam deformadas. O disco exige atenção. Quem escuta distraído perde camadas inteiras. Fiona constrói um álbum que pede envolvimento ativo. Não há atalhos. A capa do disco sintetiza tudo. O olhar fixo, o sorriso desconcertante, o enquadramento claustrofóbico. Não há tentativa de sedução. Há desafio. Fiona se coloca diante do mundo sem armadura. E isso, paradoxalmente, é sua maior força.


Cinco anos depois, Fetch the Bolt Cutters soa menos como um retrato da pandemia e mais como um diagnóstico permanente. O mundo seguiu em frente, mas os problemas que o disco expõe continuam intactos. No Brasil, onde os índices de violência contra mulheres seguem alarmantes, ouvir Fiona Apple hoje é um ato político, mesmo quando ela não menciona política diretamente.



Este não é um disco sobre raiva. É um disco sobre lucidez. Sobre entender que o silêncio nunca foi proteção. E que romper, mesmo que de forma imperfeita, ainda é melhor do que aceitar a prisão como destino.


Fetch the Bolt Cutters permanece porque não resolveu nada. E talvez essa seja sua maior vitória.

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⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️

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