Carlos, Erasmo… um disco provocativo, atual e incômodo — como deve ser
- Marcello Almeida
- 19 de jul.
- 3 min de leitura
Um disco que não se ajoelha, não se cala, não envelhece

Carlos, Erasmo.... Três pontos e um nome: o de um artista no limiar da liberdade e da ruptura. Um nome que ecoa como declaração, como manifesto, como recomeço. Lançado em 1971, no auge da repressão militar no Brasil, o disco é mais do que um marco: é uma carta aberta de um homem em plena travessia. Um álbum que nasce do desmonte da Jovem Guarda e se ergue como obra-prima contracultural, pulsando vida, coragem e desobediência.
Parafraseando um verso que ainda ressoa como farol num país tantas vezes mergulhado na névoa: “Mas não vou ficar calado / No conforto acomodado / Como tantos por aí / É preciso dar um jeito, meu amigo”. A canção é “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”, composta com Roberto Carlos, irmão de alma e parceiro de estrada. Mas poderia ser o próprio corpo do disco falando. Uma obra que não apenas reflete o Brasil daquele ano, mas o empurra, cutuca, revira — e permanece atual, como se cada faixa carregasse dentro dela um espelho do agora.
Erasmo, aos 30, estava diante do abismo e resolveu mergulhar. O fim da Jovem Guarda, em 1968, foi também o início de uma busca pessoal. Carlos, Erasmo… é o retrato dessa inquietação: um disco de transição, mas também de afirmação. Não mais o adolescente das canções de amor fáceis, mas um homem que fala de sexo, drogas, desilusão, autoconhecimento e política — com lirismo, com groove, com sangue nos olhos e poesia nas veias.
A foto da capa, feita por João Castrioto, é por si só um statement. Erasmo aparece como um hippie tropical, barba por fazer, pulseiras, túnica, sentado na grama — o oposto do galã engomado da TV. Ele escolhe a estrada de terra, o desvio, a contramão. E o som acompanha: um caldeirão vibrante de samba-rock, bossa, soul, balada psicodélica, funk e guitarras elétricas. É Brasil, é mundo, é resistência sonora.
A abertura com “De Noite na Cama”, composição de Caetano Veloso em exílio, já deixa claro: o disco não vai se esconder. É alegre, provocante, dançante, com guitarras que sorriem e um arranjo que abraça o corpo todo. Em “Masculino, Feminino”, o tom muda — surge a doçura melancólica de um dueto com Marisa Fossa, em clima de sonho. Depois vem o tapa de realidade com “Dois Animais na Selva Suja da Rua”, puro rock urbano, carregado de crítica social.
“Não Te Quero Santa” mexe com a moral da época, enquanto “Mundo Deserto” e “Ciça, Cecília” mergulham no soul e no funk com ares de Detroit tropical. As letras falam de liberdade íntima, de desejo, de solidão, de mudança. Tudo embalado por uma produção impecável: Liminha no baixo, Sérgio Dias na guitarra, Dinho Lemes na bateria, arranjos de Chiquinho de Moraes e produção de Manoel Barenbein. Um dream team em estado de invenção.
Mas o que faz Carlos, Erasmo… atravessar 54 anos ainda tão fresco é sua coragem emocional. É um disco que se despe. Que abandona rótulos. Que aceita a dúvida, a dor, o prazer e a contradição como matéria-prima. Um disco que não tem medo de crescer — e de mostrar isso.
Não à toa, quando Erasmo faleceu, esse álbum voltou a ser ouvido com o carinho que merece. E mais: recentemente, a canção “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo” ganhou novos ouvidos e voltou ao centro da cena ao ser escolhida como tema do filme Ainda Estou Aqui. Uma composição de 71, atravessando o presente como um aviso, um chamado, um abraço. O povo ouviu de novo. Sentiu de novo. Entendeu de novo.
Porque Carlos, Erasmo… é mais que um disco. É um retrato vivo de uma virada. Um aceno para o futuro. Um convite ao risco. Um lembrete de que é preciso, sim, dar um jeito. Hoje, 54 anos depois, essas canções seguem tão jovens quanto seu criador — porque juventude, afinal, é liberdade. E liberdade é tudo o que Carlos, Erasmo… tem.
Obrigado, Tremendão. Você fez mais que música. Você nos ensinou a ser.

⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️
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