Por que ainda ouvimos: Dreams, do The Cranberries
- Marcello Almeida

- 1 de ago.
- 2 min de leitura
O primeiro amor é aquele que ensina mais do que todas as teorias

É difícil ouvir Dreams e não sentir o coração sendo puxado para algum lugar entre a juventude e o deslumbramento. Lançada no início dos anos 90, mais precisamente em 93, como parte do lindo e nostálgico Everybody Else Is Doing It, So Why Can’t We?, a canção capturou, como poucas, a estética emocional da década: crua, sensível, cheia de descobertas — e de medos também.
A saudosa Dolores O’Riordan canta com a alma entregue — sua voz, ora suave, ora rasgada, parece aprender, junto com a própria letra, o que significa amar pela primeira vez. Literalmente, uma voz de anjo, daquelas que sabem penetrar na alma e desencadear inúmeras sensações e emoções. É como quando você conhece aquela pessoa que faz aflorar todas aquelas sensações gostosas do início de um relacionamento.
O álbum, lançado em plena transição entre os excessos dos anos 80 e a introspecção noventista, é quase um manifesto involuntário da vulnerabilidade. Nada em Dreams é cínico ou programado. Ao contrário: a música pulsa com a surpresa de quem vê sua vida sendo transformada de maneira inesperada. “My life is changing everyday / In every possible way” não é só um verso bonito — é o reconhecimento do amor como um acontecimento. Algo que escapa do controle e reorganiza o mundo.
Dolores escreveu a faixa inspirada em seu primeiro amor, vivido na Irlanda. Há algo de universal nesse gesto: todos guardamos um nome, um cheiro, uma estação do ano que marcou essa estreia. E como todo primeiro amor, há encanto e há dor. Em “You have my heart, so don’t hurt me”, está o medo de se entregar e não ser cuidado. E isso é profundamente humano.
A psicologia fala do “amor inaugural” como aquele que abre as portas da identidade. O amor que não apenas se sente, mas que forma. E Dreams é sobre isso: sobre se tornar alguém novo por causa de um sentimento que, até então, só existia na imaginação. Dolores canta “my dreams, it’s never quite as it seems”, como quem percebe que a realidade do amor — imperfeita, intensa, assombrosa — é muito mais real do que qualquer fantasia adolescente.
Mesmo o instrumental contribui para esse rito de passagem emocional: guitarras etéreas, bateria leve, tudo flutuando numa melodia que parece caminhar entre o devaneio e a epifania. O som não pesa — ele ascende. E nesse voo está a assinatura estética de uma década que acreditava mais no que se sentia do que no que se dizia.
Por isso ainda ouvimos Dreams. Porque há amores que nunca se repetem — mas que continuam a nos habitar, silenciosamente, como uma lembrança que amadurece junto com a gente.
O amor que nos muda para sempre é o que nunca deixamos de revisitar.















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