Anos 90: 10 discos (Parte 2) — o som que virou o mundo de cabeça pra baixo
- Marcello Almeida

- há 11 horas
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O último grito de um mundo que não queria se render à indiferença

Havia algo de mágico nos anos 90, uma urgência, uma inquietação, um desejo de recomeçar o mundo pela música. Era a década em que o rock alternativo deixava de ser subterrâneo para se tornar voz de uma geração, e o indie ainda significava resistência, autenticidade, imperfeição bonita. Do grunge ao shoegaze, do dream pop ao trip hop, os sons se cruzavam sem pedir permissão, como se cada guitarra distorcida fosse uma tentativa de entender a própria alma em meio ao caos moderno.
Foi o período em que Seattle se tornou metáfora da angústia e Manchester o palco da euforia. Nirvana, Radiohead, My Bloody Valentine, Ride, Cocteau Twins, Smashing Pumpkins, Pavement — todos falavam da mesma coisa, mas em idiomas diferentes: o desconforto de existir e a beleza escondida nele. Enquanto o grunge despia o rock de suas máscaras, o britpop reencantava a juventude com sua autoconfiança melódica, e o shoegaze dissolvia tudo em ondas de ruído e luz.
Os anos 90 foram mais do que uma década, foram um estado de espírito. Um tempo em que a música ainda parecia capaz de salvar, mesmo que fosse só por quatro minutos. Cada disco era uma confissão, um manifesto, uma fuga. E no subterrâneo, longe dos holofotes, nasciam as obras que moldariam o som do invisível, discos que ainda hoje soam como o último grito de um mundo que não queria se render à indiferença.
Pavement – Slanted & Enchanted (1992)

Slanted & Enchanted é o retrato mais puro daquilo que o indie rock prometia ser antes de se tornar estética: despretensioso, caótico, irônico e profundamente verdadeiro. O disco de estreia do Pavement soa como se tivesse sido gravado em um quarto cheio de poeira, mas o que há ali é ouro em forma de ruído. Stephen Malkmus transforma a apatia em poesia e a dissonância em melodia, como se a falta de polimento fosse o próprio manifesto. É um disco que não tenta agradar; apenas existe, e justamente por isso se torna essencial.
Canções como “Here”, melancólica e sincera, são pequenos lampejos de humanidade dentro do caos. É uma faixa que parece pedir desculpas por sentir demais, uma confissão sem direção, mas com alma. Slanted & Enchanted não é apenas um marco do indie dos anos 90, é um lembrete de que a beleza pode estar exatamente na imperfeição, nas falhas, nas guitarras que desafinam e nos versos que não sabem onde vão parar.
My Bloody Valentine – Loveless (1991)

Loveless é como um sonho que se desfaz no instante em que tentamos tocá-lo. Kevin Shields constrói um muro de som tão denso e hipnótico que as guitarras deixam de ser instrumentos e viram textura, névoa, sensação. O álbum é um marco absoluto do shoegaze, mas também uma experiência sensorial, feita de distorções que soam como lembranças fragmentadas.
Entre o barulho e a delicadeza, o disco encontra uma beleza quase espiritual, como se o caos fosse o único lugar possível para a ternura. Loveless não apenas redefine o som dos anos 90, ele ensina que, às vezes, é preciso se perder completamente para encontrar algo verdadeiro.
Ride – Nowhere (1990)

Nowhere é o som de um mergulho sem volta. O disco de estreia do Ride abre as comportas do shoegaze britânico com uma urgência juvenil que mistura delicadeza e tempestade. Guitarras em espiral, vocais distantes e uma bateria que soa como mar batendo em rochedos, tudo parece em suspensão, entre o sonho e o colapso. É o tipo de álbum que traduz a confusão de estar vivo, jovem e perdido, mas ainda assim acreditar que há poesia no ruído.
Em faixas como “Vapour Trail”, o Ride encontra o equilíbrio perfeito entre melancolia e redenção. É uma canção que soa como o último dia de verão antes da chuva eterna. Nowhere não é apenas um marco do gênero, é um retrato visceral de uma geração que aprendeu a transformar o vazio em som.
Cocteau Twins – Heaven or Las Vegas (1990)

Heaven or Las Vegas é como flutuar dentro de uma lembrança luminosa. O Cocteau Twins transforma o etéreo em linguagem: guitarras que brilham como vitrais, sintetizadores que respiram, e a voz de Elizabeth Fraser — indecifrável, mas profundamente emocional, conduzindo tudo como um sonho em câmera lenta. O álbum é o auge da banda, uma síntese entre a abstração dos trabalhos anteriores e uma nova busca por calor humano dentro da imensidão sonora.
Há algo de divino e terreno coexistindo aqui, um equilíbrio raro entre êxtase e melancolia. Heaven or Las Vegas é mais do que música; é sensação, transparência e entrega. Um disco que parece falar uma língua inventada, mas que todo coração entende.
Manic Street Preachers – This Is My Truth Tell Me Yours (1998)

Há discos que parecem testemunhos. This Is My Truth Tell Me Yours é um deles, um manifesto introspectivo de uma banda marcada pela perda, pela política e pela culpa. Após o desaparecimento de Richey Edwards, o Manic Street Preachers encontrou aqui uma nova forma de existir: menos raivosa, mais contemplativa, mas ainda profundamente emocional. O álbum carrega um senso de elegância triste — letras que investigam o luto, a identidade e a consciência social britânica com maturidade e dor contida.
Com canções como “If You Tolerate This Your Children Will Be Next”, o grupo transforma ideais em poesia, e a melancolia em força política. É um disco que pensa o mundo e sente o mundo, um exercício de honestidade brutal envolto em melodias majestosas. This Is My Truth Tell Me Yours é o som de uma banda que aprendeu que a revolução
também pode sussurrar.
Teenage Fanclub – Bandwagonesque (1991)

Bandwagonesque é o som da doçura resistindo ao cinismo dos anos 90. O Teenage Fanclub encontrou aqui o equilíbrio perfeito entre guitarras sujas e melodias ensolaradas, um ponto de encontro entre Big Star e o espírito alternativo que nascia com o grunge. Há algo profundamente humano na forma como o disco trata o amor, a dúvida e o tempo, sem pressa, sem grandes poses, apenas com refrões que parecem abraços.
Em faixas como “The Concept”, o poder está na sinceridade. Nada soa forçado: tudo é espontâneo, quase doméstico, como se o rock ainda fosse um gesto de afeto. Bandwagonesque é um álbum que lembra que a beleza pode ser simples, e que às vezes, ser pop é o ato mais honesto que existe.
Jeff Buckley – Grace (1994)

Grace é um desses raros discos em que a vulnerabilidade se torna força. Jeff Buckley canta como quem atravessa o próprio abismo, entre o sagrado e o profano, entre o grito e o sussurro. Sua voz, carregada de alma e vertigem, percorre as canções como um espírito inquieto em busca de redenção. As guitarras soam líquidas, quase celestiais, enquanto cada faixa parece existir à beira da transcendência.
Há algo de intocável em Grace: é beleza à beira do colapso, emoção em estado bruto. Buckley não apenas interpreta; ele sente cada verso como se fosse o último. O disco é uma oração moderna, onde o amor, a solidão e a finitude se encontram, e permanecem ecoando, eternos, muito depois do silêncio.
Primal Scream – Screamadelica (1991)

Screamadelica é o momento em que o rock descobre o êxtase eletrônico. O Primal Scream derruba todas as fronteiras entre guitarras, beats e espiritualidade rave, criando um dos álbuns mais libertadores dos anos 90. É psicodelia pós-moderna: gospel, dub, house e Rolling Stones se misturam como se sempre tivessem pertencido ao mesmo universo. Cada faixa pulsa como uma celebração, um convite à entrega e à transcendência.
Em “Loaded” e “Come Together”, o som se torna comunhão, uma explosão de ritmo e esperança. Screamadelica é mais do que um disco; é uma epifania coletiva, uma revolução estética e emocional. Um lembrete de que a música pode, sim, salvar — nem que seja por algumas horas de dança e luz.
The Smashing Pumpkins – Siamese Dream (1993)

Siamese Dream é o som da beleza em colapso. Billy Corgan transforma dor, culpa e perfeccionismo em muralhas de guitarras distorcidas e emoções à flor da pele. É um disco denso, quase sufocante, mas atravessado por uma sinceridade desarmante, como se cada faixa fosse uma tentativa de curar o próprio caos. A produção meticulosa, as camadas infinitas de som e a entrega total da banda criam uma obra que parece gritar por redenção.
Em canções como “Disarm” e “Today”, o desespero encontra uma forma quase angelical. Siamese Dream é frágil e grandioso ao mesmo tempo, um disco feito de vulnerabilidade e fúria, onde o rock alternativo alcança um raro estado de transcendência emocional. É a confissão de uma alma à beira, mas ainda disposta a acreditar na beleza.
The Jesus and Mary Chain – Honey’s Dead (1992)

Honey’s Dead é a colisão perfeita entre o caos e a sedução. O Jesus and Mary Chain reaparece aqui mais afiado, mais provocante e menos etéreo, um retorno à sujeira das origens, mas com o veneno do hedonismo dos anos 90. As guitarras são lâminas, o reverb é denso, e cada canção soa como um beijo dado no meio do incêndio. O disco é barulhento, arrogante e deliciosamente ambíguo, onde o sagrado e o profano se encontram sob a mesma distorção.
Em “Reverence”, eles sintetizam tudo: “I wanna die just like Jesus Christ.” — uma provocação que é ao mesmo tempo prece e desafio. Honey’s Dead não busca agradar; ele fere, provoca, excita. É o som do rock alternativo olhando no espelho e admitindo que o inferno pode ser lindo.















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