Unknown Pleasures: por dentro da alma sombria e luminosa do Joy Division
- Marcello Almeida

- 4 de ago.
- 3 min de leitura
Algumas histórias não são apenas contadas. Elas são sentidas, como ecos que jamais se apagam

Poucos livros sobre cultura pop conseguem equilibrar honestidade, humor e intensidade sem sacrificar a essência da história que contam. Joy Division: Unknown Pleasures, escrito por Peter Hook, faz exatamente isso — e com um brilho raro. Quem melhor para narrar a trajetória de uma das bandas mais influentes do século XX do que alguém que viveu cada acorde, cada silêncio, cada noite insones de criação e caos?
Hook, baixista e fundador do Joy Division, conduz o leitor por um caminho que vai muito além das cronologias convencionais. Ele nos coloca dentro da sala abafada dos primeiros ensaios, na fumaça densa dos bares de Manchester, na tensão elétrica de cada show, no abismo emocional que marcou o destino da banda. E faz isso com um senso de humor desarmante, quase em contraste com a melancolia cortante que moldou a música do grupo.
O nascimento de um som que mudou tudo
Manchester, 1976. A cidade respira concreto e desencanto. Enquanto o punk do Sex Pistols incendeia a Inglaterra com sua fúria, um grupo de jovens decide criar algo que fosse além da explosão, algo que traduzisse um estado de espírito. Assim nascia o Joy Division, com Peter Hook e Bernard Sumner hipnotizados pelo que viram no palco do Pistols — uma faísca que acendeu uma chama sombria, melódica, visceral.
O livro revela o que aconteceu depois dessa fagulha: instrumentos ruins, dificuldades financeiras, noites intermináveis tentando aprender a tocar, viagens em vans precárias, brigas, reconciliações, amores, perda. Hook conta tudo com uma franqueza que só alguém que esteve lá poderia ter. Ele não suaviza as falhas, nem romantiza demais a tragédia — mas também não perde a capacidade de rir de si mesmo e das situações absurdas que cercavam a banda.
Ian Curtis: luz e sombra em estado bruto
É impossível falar do Joy Division sem falar de Ian Curtis. No livro, cada menção a ele carrega uma espécie de luto tardio. Hook não disfarça a dor, nem tenta explicar o inexplicável. Ele admite: talvez nem Ian se conhecesse por completo. Mas, ao narrar esses momentos, Hook parece fazer uma despedida que nunca pôde acontecer. E isso dá ao livro uma carga emocional imensa, especialmente quando descreve os últimos dias antes do silêncio definitivo de Curtis — um silêncio que ecoa até hoje.
Aqui, as memórias não são lineares nem perfeitas. Hook admite quando não lembra de algo, e isso só reforça a autenticidade da narrativa. Não é um relato frio: é uma história pulsante, imperfeita, honesta. E isso é o que a torna diferente de tudo.
Muito além da biografia: um documento de época
Unknown Pleasures não é apenas um livro para fãs do Joy Division. Ele é um retrato de um tempo, de uma juventude que encontrou na música um escape para a desesperança. É sobre os becos cinzentos de Manchester, o vazio industrial, a urgência criativa. É sobre um grupo de garotos comuns que criaram algo extraordinário sem sequer imaginar o tamanho da própria influência.
Ao virar as páginas, você não lê apenas uma história: você entra nela. É como se Hook estivesse ali, sentado à sua frente, contando tudo entre um gole de cerveja e uma risada nostálgica. Essa proximidade é rara, e é o que faz do livro um dos melhores relatos já escritos sobre música.
A edição brasileira ainda traz um prefácio brilhante de Edgard Scandurra (Ira!), situando o leitor no contexto histórico, além de detalhes que encantam os colecionadores. E, para os fãs mais devotos, há até o autógrafo de Hook — um toque simbólico que sela essa viagem no tempo.
Por que ainda precisamos ouvir essa voz
Em um mundo acelerado, onde a música muitas vezes vira consumo instantâneo, voltar às origens do Joy Division é um exercício de resistência. É lembrar que algumas obras não nascem para agradar, mas para incomodar. Que a arte, quando verdadeira, não se curva ao tempo.
Hook escreveu mais do que um livro: escreveu um testemunho. Um relato cru, poético e essencial para quem quer entender por que, mais de quatro décadas depois, seguimos falando de uma banda que lançou apenas dois discos — e, mesmo assim, mudou para sempre a história da música.
No fim, ‘Unknown Pleasures’ é isso: um mergulho em um universo sombrio e hipnótico, onde cada nota é uma confissão e cada silêncio, um grito que nunca vai se calar.
















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