Kafka e a condição humana: por que ‘A Metamorfose’ ainda nos devora por dentro
- Marcello Almeida
- 4 de ago.
- 3 min de leitura
Às vezes, a maior metamorfose é sobreviver ao próprio tempo

Quando Franz Kafka publicou A Metamorfose em 1915, talvez não imaginasse que mais de um século depois o mundo ainda se sentiria aprisionado na mesma armadilha existencial. A frase inaugural – “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” – não é apenas um início literário brilhante. É um golpe. Um soco seco no leitor, um convite sem volta ao universo kafkiano, onde o absurdo não pede licença: ele se impõe.
A genialidade dessa abertura está no fato de não oferecer explicação, apenas a constatação brutal da transformação. E é justamente nesse silêncio que a obra encontra sua força. Porque a questão nunca foi entender como Gregor se tornou um inseto, mas por que isso nos parece tão próximo, tão familiar.
Mais de cem anos depois, seguimos lendo Kafka porque sua metáfora continua viva – talvez mais viva do que nunca. Em 2025, a humanidade experimenta metamorfoses cotidianas. Não acordamos como baratas, mas como perfis, avatares, códigos binários. A tecnologia nos prometeu liberdade, mas nos entregou uma nova forma de clausura: a prisão da performance. Não bastava trabalhar, agora precisamos performar trabalho, performar felicidade, performar relevância. E nessa lógica, quem falha, quem não acompanha a velocidade, é descartado – assim como Gregor foi.
O peso insuportável da utilidade
Gregor Samsa não é apenas um personagem. Ele é o símbolo de uma engrenagem cruel: a do corpo que só vale enquanto produz. Até sua metamorfose, ele era o provedor, o trabalhador exausto, aquele que sustentava a casa e carregava nos ombros a sobrevivência da família. Bastou a inutilidade para que o amor evaporasse. A metamorfose não foi o que o matou; foi a indiferença.
Essa lógica é assustadoramente atual. Em um mundo guiado por algoritmos, em que métricas definem quem importa, a ideia de valor humano se confunde com produtividade. Perdemos o direito ao erro, ao silêncio, ao ócio. Vivemos sob a ditadura da eficiência, como se o tempo só existisse para ser monetizado. Gregor, em 2025, não acordaria inseto: acordaria demitido, substituído por uma IA mais barata, mais veloz, mais perfeita.
Solidão hiperconectada

Outro aspecto que torna a obra tão inquietante é a solidão que se instala no coração da narrativa. Gregor não é apenas rejeitado: ele é esquecido dentro do próprio lar. Sua existência se torna um incômodo, um segredo sujo trancado no quarto. E isso, paradoxalmente, é o espelho de uma era hiperconectada e profundamente solitária.
Estamos cercados de telas, mas carentes de toque. Temos milhões de vozes ao alcance de um clique, mas a sensação de isolamento cresce como uma sombra. Somos vistos, mas não somos olhados. E, como Gregor, muitas vezes nos sentimos deslocados, estranhos, impróprios para o mundo que ajudamos a sustentar.
O monstro nunca foi Gregor

Há quem leia o livro como uma fábula sobre punição, mas a verdadeira monstruosidade não está em Gregor. Está no olhar da família, no desprezo crescente, na incapacidade de amar sem condição. Kafka nos mostra que a metamorfose revela, mais do que provoca, a essência das relações humanas: frágeis, utilitárias, condicionadas. Quando não servimos mais, deixamos de ser necessários.
Essa é, talvez, a crítica mais brutal do livro – e a mais atual. Em um mundo em que vínculos se dissolvem com a mesma facilidade de um clique, em que o amor se mede por algoritmos e a amizade é mediada por notificações, a pergunta permanece: quanto do que chamamos de afeto não é apenas conveniência?
Por que ainda precisamos de Kafka
Ler Kafka em 2025 é confrontar um espelho desconfortável. É admitir que a modernidade líquida, como diria Bauman, nos transformou em seres descartáveis, sempre à beira de uma obsolescência emocional e social. É perceber que a metamorfose não é uma ficção fantástica, mas um estado cotidiano: a cada dia, nos adaptamos para caber em um sistema que nos exige sempre mais – e nos dá sempre menos.
Talvez por isso A Metamorfose seja uma leitura tão necessária. Porque ela nos lembra de algo simples e terrível: a desumanização não acontece de repente, como num despertar monstruoso. Ela se constrói aos poucos, na indiferença, na pressa, no silêncio. E, quando percebemos, já não sabemos mais quem somos – ou se ainda somos alguém.
No fim, Kafka não escreveu sobre um inseto. Escreveu sobre nós. E a verdade é que continuamos rastejando dentro das nossas próprias grades invisíveis, implorando para que alguém ainda nos veja humanos.
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