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Tudo aquilo que você já sabe sobre “Polly”, do Nirvana, mas ainda precisamos dizer

O horror que Kurt Cobain denunciou nos anos 90 nunca deixou de acontecer, ele só mudou de endereço

Nirvana
Imagem: Divulgação

Quando uma música de 91 ainda descreve o Brasil de 2025, é porque algo ficou profundamente errado no caminho. “Polly”, do Nirvana, não é apenas uma canção sombria de Nevermind. É um documento de violência. Um lembrete incômodo de que o horror atravessa décadas sem perder força, sem ser contido, sem ser compreendido. A faixa nasceu de um crime real: o sequestro, estupro e tortura de uma menina de 14 anos em Tacoma, em 1987.



Ela sobreviveu, conseguiu escapar e viu o agressor voltar para a cadeia. Mas o que deveria ter sido uma tragédia isolada virou símbolo de algo muito maior — algo que, infelizmente, segue vivo.


Kurt Cobain escreveu a letra a partir do ponto de vista do agressor. Não foi para chocar por chocar. Foi para obrigar o ouvinte a encarar a crueldade sem metáforas, sem filtros, sem romantização. Cobain queria expor o mecanismo da violência: a forma como um estuprador enxerga uma vítima, a desumanização total, o pensamento frio que reduz uma adolescente a objeto. O desconforto é intencional. É o centro da música. É o que torna “Polly” uma denúncia e não uma ficção.


O mais triste é perceber como essa denúncia continua atual. A história que inspirou a música é dos anos 80. A faixa é dos anos 90. Estamos em 2025 — e nada mudou de verdade. O Brasil continua enterrando mulheres. Continuamos acordando com notícias de feminicídios, torturas, agressões, desaparecimentos. Continuamos tentando explicar o inexplicável: por que tantos homens ainda acreditam que têm direito sobre o corpo, a vida e o destino de uma mulher.


A violência de gênero virou rotina, pauta diária, estatística em ascensão. E isso diz menos sobre as vítimas e muito mais sobre o tipo de masculilidade que essa sociedade insiste em produzir.


Cobain sempre foi direto ao falar de estupro e machismo. Ele dizia que não se trata de ensinar mulheres a se proteger, mas de ensinar homens a não violentar. Décadas depois, seguimos falhando exatamente nesse ponto. Continuamos criando meninos que não sabem lidar com rejeição, frustração ou limites. Homens que confundem amor com posse, desejo com domínio, autonomia com ameaça. A cultura que normaliza essa postura é a mesma que transforma o feminicídio em desfecho anunciado.


É por isso que “Polly” ainda soa tão urgente. Porque ela retrata algo que nunca deixou de existir: a brutalidade sistêmica contra mulheres. A letra revela o pensamento de um agressor, mas o que assusta é perceber que muitos crimes atuais seguem a mesma lógica, a mesma frieza, o mesmo desrespeito absoluto pela vida. O Brasil de hoje repete o horror de Tacoma com novos nomes, novos rostos, novas vítimas — mas sempre a mesma estrutura.



A cada novo feminicídio, a sensação é de que estamos presos num ciclo que ninguém rompe. As mulheres pedem ajuda e não são ouvidas. Denunciam e não são protegidas. Fogem e são perseguidas. Tentam sobreviver e são assassinadas. A pergunta inevitável é: que sociedade é essa que se acostumou a perder mulheres? Em que momento o país decidiu aceitar o feminicídio como parte da paisagem?


Não dá para dizer que não sabíamos. Não dá para fingir surpresa. A cultura do estupro, o machismo estrutural, a misoginia cotidiana — tudo isso está aqui há décadas, e continua sendo alimentado. “Polly” só expôs algo que já existia. O problema é que, mais de trinta anos depois, seguimos encarando a mesma tragédia como se fosse nova.


No fim, a música continua sendo um espelho cruel. Ela existe para lembrar que a violência contra mulheres não é ficção, não é exagero, não é exceção. É realidade. É estrutura. É responsabilidade coletiva. E enquanto não formos capazes de mudar a educação que damos aos meninos, a forma como respondemos às denúncias, a cultura que romantiza controle e silêncio, continuaremos perdendo vidas que nunca deveriam ter sido arrancadas.



“Polly” ainda nos fere porque ainda é verdade. E, num país onde tantas mulheres não conseguem escapar, como a menina de Tacoma conseguiu, a pergunta que fica é a mais dolorosa de todas: até quando vamos aceitar viver numa sociedade que falha todos os dias com todas as suas Pollys?



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