They Live, de John Carpenter, ainda é a distopia mais urgente do nosso tempo
- Marcello Almeida
- 20 de jun.
- 3 min de leitura
Coloque os óculos. Enxergue. Revolte-se

Tem filmes que não são só filmes. São farpas. Agulhas envenenadas. Gritos sufocados. They Live, de John Carpenter, é exatamente isso: uma obra de ficção científica que rasga o verniz da realidade e esfrega na tua cara a verdade que você passou a vida tentando evitar. Um clássico cult de 1988 que continua mais atual do que qualquer manchete de 2025.
Carpenter dirige com fúria e ironia, cuspindo na cara de uma sociedade dominada por publicidade, algoritmos, narrativas fabricadas e líderes que sorriem enquanto apertam o laço no seu pescoço. O filme é uma parábola escancarada sobre consumismo, obediência, desigualdade e manipulação ideológica — e é por isso que ainda incomoda tanto.
John Nada, vivido por Roddy Piper, é o trabalhador invisível. O cara que perdeu tudo, menos a dignidade. Um operário em busca de trabalho num mundo onde os ricos flutuam em iates e os pobres se amontoam em barracos. Um dia, ele encontra um óculos escuro e, ao colocá-lo, vê o mundo como ele realmente é: um teatro sujo comandado por alienígenas com cara de banqueiro e alma de CEO.
Com os óculos, os outdoors gritam: OBEDEÇA. CONSUMA. NÃO QUESTIONE. As revistas dizem: REPRODUZA. SUBMETA-SE. E o dinheiro — esse falso deus — estampa a frase: “ESTE É SEU DEUS.”

E a pergunta que o filme martela no crânio é:
Você realmente precisa de um par de óculos pra enxergar isso tudo?
A metáfora é violenta. E hoje, ela pulsa ainda mais forte. Os alienígenas não são mais fantasia. Eles estão aí: nos gabinetes, nas câmeras de segurança, nos discursos de políticos autoritários travestidos de democratas. Estão nos algoritmos das redes, nas fake news, na fabricação industrial de medo e ódio. Carpenter previu o colapso da percepção. Antecipou esse tempo em que a verdade virou um produto — e a mentira, um estilo de vida.
A luta entre Nada e Frank (Keith David), antológica em sua duração absurda, não é só uma briga de rua. É uma metáfora sobre o desespero de acordar alguém. Sobre o esforço hercúleo de fazer alguém ver aquilo que está bem diante dos olhos, mas foi moldado pra parecer normal. Como dizer a alguém que tudo é manipulado, quando o manipulador é quem dita a realidade?
Carpenter, aqui, está no auge do seu veneno. Inspirado pelo conto “Eight O’Clock in the Morning” de Ray Nelson, ele recria o enredo com ácido no lugar de tinta. Crava no filme seu desprezo pela era Reagan, pela comercialização da cultura, pela farsa embalada em sorrisos e slogans. O cinema virou arma. E They Live é um míssil.
E mesmo assim, o filme diverte. Com humor negro, diálogos canastrões, cenas de ação cheias de testosterona e atuações que abraçam o exagero. Porque o truque está aí: They Live parece um filme B de quinta categoria — mas é um tratado filosófico sobre dominação em forma de pancadaria. A genialidade de Carpenter é essa: esconder a dinamite dentro de uma caixa de cereal.
Hoje, o sistema é mais polido. Mais limpo. Mas tão tóxico quanto. Os alienígenas vestem terno slim, falam de inovação e prometem revoluções digitais. Tudo pra continuar vendendo, controlando, dividindo. Eles ainda vivem. E você, aí, com seus óculos invisíveis, continua achando que está no controle.

They Live não envelheceu um dia. Porque o pesadelo que ele denunciava nunca acabou. Pelo contrário — ele se aperfeiçoou. E você, se tiver coragem, pode até colocar os óculos. Mas prepare-se: depois disso, não dá mais pra fingir.
Comentários