Sonhos de Trem: quando as memórias de uma vida viram poesia e transformam o simples em algo inesquecível
- Eduardo Salvalaio
- há 19 horas
- 3 min de leitura
A velhice, ganha uma bela leitura sem cair em extremo sentimentalismo

Com as luzes apagadas do quarto e prestes a cair num sono profundo, muitas vezes ainda ficamos pensando em algum filme que assistimos. Embora cansados, ficamos remoendo fragmentos, cenas, diálogos ou até mesmo somos perturbados por questões que não deixaram respostas objetivas ou pelas interpretações que ainda não foram totalmente assimiladas.
Sonhos de Trem (Train Dreams, 2025), o segundo longa metragem do diretor Clint Bentley, pode ser incluído nesse caso. Baseado na obra homônima do escritor e poeta americano Denis Johnson, o filme é conduzido com extrema carga poética e por sua delicada forma de retratar uma pessoa simples. Como consequência, essa é mais uma obra cinematográfica em que, do início ao fim, analisamos nossa rotina, família, empregos, amizades e até mesmo o envelhecimento.
Esse poderia ser mais um filme amargo ou cruel a todo tempo. Poderia até inventar ou exagerar. E não é. Robert Grainier (Joel Edgerton), que perdeu os pais biológicos muito cedo, é enviado para a América e assim começa a traçar sua vida como lenhador. Um garoto que desde cedo ficou perplexo com a naturalidade da violência, conforme o próprio narrador (na belíssima voz de Will Patton) nos confessa.
Desde os primeiros minutos, Bentley já deixa suas marcas: fazer um retrato fiel de uma América do início do Século XX que vê na extração de madeira uma fonte de renda e geradora de empregos ou mostrar como a xenofobia escurece nossa alma e deixa uma ferida incurável em alguém (numa das cenas mais comoventes da película).
Conforme a história avança, o narrador fala sobre uma América em evolução que muda conforme o progresso avança. A ponte feita com troncos de árvores pelos lenhadores vai ficando obsoleta por conta de uma ponte de concreto. O serrote traçador dá lugar a motosserra barulhenta acelerando ainda mais o processo de derrubada das árvores.
Não apenas Robert, estamos diante de uma narrativa que vai apontando personagens memoráveis, mesmo que nem apareçam tanto na tela. Gladys (Felicity Jones) é a esposa de Robert e dela também são entregues momentos bem sensíveis para a narrativa.

Também temos a presença de Ignatius Jack (Nathaniel Arcand) e Claire (Kerry Condon). Pessoas que entram na vida de Robert e que simbolizam o poder da amizade para momentos que mais nos sentimos desamparados. Uma amizade que embora entre e saia logo de nossas vidas, sempre deixa uma indelével impressão e é capaz de passar seus ensinamentos.
Outro destaque é Arn Peeples (numa belíssima interpretação de William H. Macy, para variar). Um personagem que confere o tom filosófico e reflexivo do filme. Um homem maduro que é capaz de confortar seus amigos e parceiros de trabalho numa frase como: ‘somos crianças nesta terra, puxamos os parafusos da roda-gigante achando que somos deuses’.
A fotografia exuberante de Adolpho Veloso, que já trabalhou ao lado de Bentley no filme Jockey (2021), realça ainda mais muitas cenas, seja a cabana iluminada do personagem, seja o verde da mata diante dos lenhadores. A trilha sonora charmosa traz o vozeirão de Nick Cave e também o estilo virtuoso do compositor e guitarrista Bryce Dressner (que também é da banda The National).
Outro tema em questão, a velhice, ganha uma bela leitura sem cair em extremo sentimentalismo. Robert vê o mundo à sua volta e sente que seu tempo está passando. Um homem transtornado pelos eventos traumáticos que presenciou, embora guarde ternura e humanidade em seu cotidiano. Novamente esses fragmentos são bem delineados pelas cativantes palavras do narrador.
A tragédia maior na vida do lenhador chega para abalar sua moral e personalidade. Entretanto, é quando sua determinação, humanidade e esperança falam mais alto. Um momento onde o espectador se aproxima ainda mais do personagem se solidarizando com ele. Aqui, o diretor nos consegue levar até os créditos finais nas buscas de respostas que Robert espera.
Sonhos de Trem é um filme fácil de indicar, necessário para ser abordado em sala de aula e que novamente coloca a vida como um próprio filme que se divide em variados atos e fragmentos. A simplicidade aqui se torna importante e leva o espectador a ter o mesmo sentimento.












