Por que ainda ouvimos 'Construção', de Chico Buarque
- Marcello Almeida
- há 19 horas
- 3 min de leitura
Porque há canções que não envelhecem: apenas revelam que o país continua no mesmo lugar

O país que ainda cai de pé.
“Construção” nasce em 1971, mas o país que ela retrata nunca saiu de cena. A ditadura vivia seu auge, o regime vendia o tal milagre econômico como se fosse redenção nacional, e quem construía essa miragem continuava morrendo sem nome. O contraste entre progresso de vitrine e desigualdade de chão era tão gritante que a canção parece, hoje, mais reportagem do que metáfora. Chico voltava do exílio, mais atento, mais ferido, mais decidido a transformar linguagem em resistência, e ali encontrou a história de um trabalhador que atravessa o disco como uma sombra permanente.
O operário que Chico descreve não tem rosto, mas tem rotina: uma repetição que anestesia, que devora, que transforma cada gesto em sobrevivência. Ele sobe o prédio como se fosse máquina, e, no fundo, é assim que o país o quer. A vida dele já começa escrita na urgência: tudo é “como se fosse a última”. E é. O trabalho, as migalhas de afeto, o retorno para casa. O Brasil que se orgulhava de erguer arranha-céus fazia isso às custas de homens invisíveis, que podiam cair a qualquer minuto. E caíam.
A genialidade da música está justamente no modo como ela reproduz essa engrenagem. Os versos longos, as proparoxítonas, a repetição quase hipnótica, tudo cria a sensação de um corpo sendo empurrado para frente sem descanso. Cada pequeno deslocamento de palavra vira revelação. Como se Chico dissesse: olha de novo, nada mudou, mas tudo mudou. O destino do trabalhador continua o mesmo; apenas a linguagem se reorganiza ao redor dele, como a cidade rearranja sua pressa após a queda de um corpo.
É impossível esquecer o contexto em que essa música rompe o silêncio. O AI-5 ainda sufocava qualquer dissenso. A censura rondava cada sílaba. E mesmo assim, em plena vigilância, Chico Buarque abre o disco com “Deus lhe pague”, fecha com uma ironia devastadora e coloca no centro uma das críticas sociais mais contundentes da nossa música. O álbum quase não existiu, problema técnico, orçamento espremido, orquestra regravada às pressas, e mesmo assim virou marco. Talvez porque tudo nele carregue urgência: era preciso dizer aquilo naquele exato momento da história.
E então vem o golpe mais profundo da canção: a morte tratada como inconveniente urbano. “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.” O país não chora; o país desvia. A violência não é só física — é estrutural, é simbólica, é a naturalização da tragédia. A queda do operário vira ruído administrativo, como se interrompesse apenas o fluxo da cidade, nunca o fluxo de vidas. Não é exagero dizer que essa frase ainda define o Brasil: corpos que atrapalham, vidas reduzidas a estorvo, mortes absorvidas sem luto.
E no meio disso tudo, Rogério Duprat constrói um arranjo que parece acompanhar a respiração de uma metrópole crescendo rápido demais. A orquestra sobe, tensiona, aperta, como se imitasse o barulho de concreto e metal sendo empilhados a toque de caixa. A música tem quase sete minutos, um absurdo para o rádio da época, e ainda assim se tornou onipresente. Talvez porque ninguém conseguia sair ileso dela.
“Construção” virou estudo, virou vestibular, virou objeto acadêmico, mas continua sendo, antes de tudo, uma ferida aberta. Um retrato que atravessa gerações porque insiste em se manter atual. O país mudou de governo, de slogan, de paisagem, mas não mudou a lógica que mata quem o sustenta. E é por isso que a canção permanece viva: porque ela toca exatamente onde o Brasil nunca cicatriza.
Continuamos ouvindo “Construção” porque ela nos obriga a encarar o que preferimos esconder. Porque expõe a engrenagem sem polir a superfície. Porque nos devolve o país sem filtros. E porque, mais de cinquenta anos depois, ainda caímos, às vezes devagar, às vezes de repente, no mesmo lugar onde ele caiu.











