PJ Harvey reencontra a paixão pela música através da poesia, em um retorno hipnótico e imersivo
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PJ Harvey reencontra a paixão pela música através da poesia, em um retorno hipnótico e imersivo

Demora um pouco para mergulhar no mundo de Harvey, mas uma vez lá, você não vai querer sair.

Crédito: Steve Gullick


Após um longo hiato de sete anos, finalmente fomos agraciados com um novo álbum da renomada e emblemática PJ Harvey. E posso dizer, sem receio algum, que a espera para colocar os ouvidos e alma em 'I Inside The Old Year Dying' valeu cada minuto, a jornada do novo trabalho começa com as vivências e experiências do seu disco anterior, 'The Hope Six Demolition Project' (2016). Após uma intensa jornada artística com 'The Hope Six...', entre viagens por lugares devastados pela guerra e pela pobreza extrema, Harvey se viu em um enorme dilema sobre seu futuro na música. O processo imersivo e criativo de criar um álbum que retratava duras realidades de forma crua e complexa foi emocionalmente esgotante, levando-a a repensar sua trajetória.


A própria musicista revelou em entrevistas que havia perdido a conexão com a música e passou a se questionar se não era hora de mudar os rumos de sua vida e deixar um pouco o caminho da música de lado. Nos anos que se seguiram, Harvey encontrou na poesia, trilha sonoras e partituras, sob a orientação do renomado poeta Don Paterson, um refúgio para se abrigar da triste e crua realidade vivenciada anteriormente.



Outra peça fundamental nesse processo de reencontro e de se reconectar novamente com a música dentro de si, foi o cineasta Steve McQueen, que ajudou ela a explorar maneiras de combinar suas paixões entre a escrita, imagem e a música. Foi McQueen que a encorajou a transcender os limites do formato de produção de um álbum tradicional, jogando luz e apontando um caminho revigorante e libertador para a artista criar sua mais nova obra intimista e introspectiva.


'I Inside The Old Year Dying' nasceu do seu mais recente livro de poesia, Orlam, de 2022, e é efetivamente uma coleção de doze poemas musicados - e Harvey apresenta uma entrega exuberante, é como se ela tivesse encontrado a verdadeira liberdade diante dessa obra indescritível e hipnotizante. Aqui, estamos de frente de uma compositora livre das amarras do caminho convencional para se colocar um disco no mundo, e isso deixa a experiência mais fluida, uma jornada de autoconhecimento que coloca uma Harvey no centro, revelando sua essência mais profunda agraciando o ouvinte com uma fusão harmoniosa entre palavras, melodias e emoções.



Um dos pontos e elementos que chamam a atenção no disco é o encanto do dialeto de Dorset e a maneira cuidadosa como Harvey se expressa pelo denso e arcaico dialeto, usando palavras como "drisk", "drush" e "gawley". Ela cria uma rica atmosfera combinada com confirmação e aquele charme que só ela tem. Essa escolha linguística oferece uma experiência auditiva única e convidativa. 'I Inside The Old Year Dying' possui o incrível poder de nos transportar para uma época passada, onde somos apresentados às nuances da vida de Ira-Abel Rawles. A grandeza dessa narrativa cresce a cada faixa e, através dessa linguagem pitoresca, somos imersos na paisagem e na cultura local, capturando a essência das experiências de Ira-Abel de uma forma excepcional.

Um ótimo exemplo disso fica por conta da faixa "Autumn Term", que narra de maneira introspectiva e hipnótica a jovem Abel temendo mais um dia na escola. A voz de PJ parece incorporar as angústias da personagem, criando uma imagem cinematográfica como se estivéssemos ali de perto observando Abel e seus conflitos, enquanto vozes de crianças ecoam em meio ao instrumental experimental da canção. Harvey nos joga versos líricos como “Eu subo três degraus até o inferno. O ônibus escolar sobe a colina”.


Já em "Lwonesome Tonight", somos tragados por um desejo sexual da agora adolescente Abel, fantasiando um momento erótico em meio a uma floresta, ansiando por um cavaleiro romântico que a ame de verdade e com ternura. É incrível os caminhos e imagens oníricas pelos quais a voz penetrante de PJ nos leva a criar em nosso subconsciente. Não é modismo e nem exagero caracterizar essa obra como hipnótica e imersiva.


Com certeza, você já ouviu em algum lugar dos becos e lacunas da cultura pop que a arte imita a vida, né? Pois então, assim como a vida de Abel, o cenário onde é ambientando essa agridoce jornada musical é um mundo em constante mutação e evolução. Harvey, é originária dessa mesma região, isso explica como ela conseguiu emanar essa profunda conexão com o local, conforme o disco vai avançando vai ficando cada vez mais evidente as notas e melodias envolventes. Um mundo mágico unido pela força poética da literatura e o poder da música, a união desses dois mundos desfrutam de um expansivo campo de paisagem circundante.


Não poderíamos esperar menos de PJ Harvey. O feito que ela consegue nesse novo trabalho confere uma camada adicional de realismo e imersão. O som do vento sussurrando entre as árvores, o farfalhar das folhas, o suave e calmante fluxo de um rio, que soa distante, envolve o ouvinte de tal maneira, transportando-o para o âmago dessa história extraordinária. "Prayer At The Gate", faixa que abre o trabalho, emula uma certa conexão com 'Hail To The Thief' do Radiohead. Harvey lança inúmeros questionamentos em meio a um falsete idêntico ao de Thom Yorke. olhe antes e olhe para trás / para a vida e a morte, todas entrelaçadas ", canta ela, enquanto os inquietantes sintetizadores jogam luzes na canção.



No entanto, estamos diante de um disco que narra uma história não linear, contada por meio de uma linguagem rica e complexa. Os versos vão deixando pontas soltas, uma espécie de quebra-cabeça criptografado difícil de ser decodificado em meras palavras que tentam entender e explicar o contexto dessa obra alucinatória. O disco é recheado de instrumentos folclóricos e arranjos psicodélicos, bem característicos em "Child's Question, August", que nos apresenta um mundo de sonhos onde podemos encontrar referências a Elvis Presley, Shakespeare, John Keats e Joana d'Arc. Como se a canção estivesse tentando ver o mundo de novo, reconectando passado, presente e a natureza.



Em suma, 'I Inside The Old Year Dying' é um álbum que transcende as fronteiras do tempo e da linguagem, oferecendo ao ouvinte uma experiência musical única. Através do talento inigualável de PJ Harvey como compositora e intérprete, o álbum discorre por um caminho espinhoso, passando por momentos que vão da infância à adolescência. Os sentimentos de Ira Abel podem se confundir com qualquer um dos nossos. A rica linguagem, que sofre constantes mutações, e o poder imersivo desta obra conquista por completo o coração do ouvinte. Demora um pouco para mergulhar no mundo de Harvey, mas uma vez lá, você não vai querer sair. Prepare-se para uma jornada musical envolvente e apaixonante, enquanto você se entrega às melodias e histórias cativantes desse álbum extraordinário.

 

I Inside The Old Year Dying

PJ Harvey


Lançamento: 7 de jullho de 2023

Gênero: Indie Rock, Rock Alternativo

Ouça: "A Child's Question, August", "Autumn Term"

Humor: Hipnótico, Catártico, Inquietante

Pra quem curte: Fiona Apple, Patti Smith, Nick Cave


 

NOTA DO CRÍTICO: 8,5

 

Veja o clipe de "A Chid's Question, August":


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