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Joni Mitchell, o volante e o vazio: Hejira é a estrada mais bonita da música

Em Hejira, Joni Mitchell canta como quem dirige sozinha à noite: com medo, liberdade e beleza

Joni Mitchell
Imagem: © Joel Bernstein

Tem discos que caminham ao nosso lado. Outros nos atropelam. Hejira flutua. Como vapor de estrada quente, como pensamento solto enquanto você encara o vazio pela janela. Joni Mitchell não nos entrega um álbum, ela nos deixa seguir seus rastros. E o que encontramos não são certezas nem refrões. São placas tortas no acostamento de uma alma inquieta.



Feito em fuga — e na pura necessidade de se entender no caos — Hejira é uma confissão com cheiro de gasolina e gosto de lágrima seca. Canções escritas ao volante, sozinha, cruzando os Estados Unidos entre shows, ex-amores e vazios. Cada faixa é uma curva, uma cidade invisível, um motel emocional. Joni escreve com o farol baixo, mirando as entrelinhas da existência. Há um sentimento de travessia em tudo aqui — espacial, temporal, emocional.


E se Blue é o grito cru da dor, Hejira é o sussurro maduro de quem já entendeu que algumas dores não curam, só mudam de forma. Confesso: por muito tempo Blue foi meu refúgio, meu templo. Mas foi com Hejira que encontrei outro tipo de paz — mais silenciosa, mais cósmica. Uma nova devoção dentro do universo Joni Mitchell.



E nesse templo, quem entoa os mantras ao lado dela é Jaco Pastorius, com um baixo que não pulsa — levita. Suas notas flutuam em órbitas paralelas às palavras de Joni, criando uma geografia sonora onde tudo é possibilidade. Não há chão firme. As linhas de baixo não sustentam — elas seduzem. Celestiais. Intangíveis. Quase irreais.


“Coyote” abre o disco como quem dá partida no carro e acende um cigarro. Guitarras dedilhadas, pulsação urgente, e uma voz que te conta um caso antigo como se fosse hoje de manhã. “Amelia” é uma carta para o além, escrita com o céu no para-brisa e a saudade no retrovisor. “Song For Sharon” é quase um romance em capítulos. E “Hejira”, a faixa-título, é jazz, é poesia, é silêncio entre ruídos. Um emaranhado de instrumentos que se atropelam e se abraçam — meticuloso, quase místico.


E aí vem “Blue Motel Room”, puro jazz esfumaçado. Uma canção que poderia estar tocando num quarto barato com as luzes apagadas e um rádio velho na cabeceira. E depois, o fecho elegante de “Refuge of the Roads”, onde Joni se despede da estrada como quem beija um amor que não vai voltar.


Hejira é o disco mais jazz de Joni Mitchell — mas não no estilo, e sim na essência. É improviso, liberdade, espaço em branco. É a beleza do que não precisa se explicar. É um álbum que não grita, mas que te atravessa com a sutileza brutal de quem já viu demais e aprendeu a dançar com o vazio.



Não é um álbum fácil. Nem deveria ser. É um mapa sem legenda, uma escuta que exige entrega. Joni não canta pra plateia. Canta pra si mesma, e a gente tem o privilégio de escutar. E, no fim, é isso que Hejira faz: te pega pela mão e te leva. Para fora de casa. Para fora de ti.


Talvez pra algum lugar onde o silêncio finalmente faça sentido.

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