O grunge que nunca foi embora
- Marcello Almeida

- 7 de out.
- 4 min de leitura
Entre o ruído e o algoritmo, a imperfeição ainda é o último refúgio da verdade

O grunge nunca foi só sobre Seattle. Foi sobre gente cansada. Sobre o peso de acordar num mundo que já vinha pronto, maquiado, brilhando demais. Quando o Nirvana explodiu, não foi apenas um som novo que se ouviu, mas um jeito novo de existir. As guitarras sujas, o desleixo das roupas, o olhar perdido de Kurt Cobain — tudo era uma recusa, um basta à perfeição plástica que dominava os anos 80.
O tempo passou e o ruído virou símbolo. O desleixo virou moda. O jeans rasgado, a flanela xadrez e o cabelo bagunçado foram absorvidos por vitrines que juravam vender autenticidade. O que nasceu como negação virou produto. E mesmo assim, algo sobreviveu. Há algo no grunge que o consumo não conseguiu domesticar: a urgência por ser de verdade.
Hoje, o palco é outro. O grunge reaparece nas telas verticais, em vídeos rápidos, com filtros que tentam imitar a imperfeição analógica. O mesmo descompromisso que um dia nasceu nos porões de Seattle agora se espalha pelo TikTok, como se o espírito rebelde coubesse em quinze segundos. É curioso ver adolescentes que nunca ouviram Smells Like Teen Spirit recriando o gesto sem entender o grito — e, mesmo assim, gritando junto.
A estética grunge sempre foi sobre contradições. Era feia e bela, suja e sensível, pesada e frágil. Agora essas contradições vivem dentro das redes, num feed que alterna drama e ironia, humor e tédio. As mesmas contradições de quem busca atenção e rejeita o olhar ao mesmo tempo. O espírito de Seattle se confunde com o vazio digital, e talvez por isso pareça tão atual.
O “faça você mesmo” virou “poste você mesmo”. O quarto que abrigava uma banda virou cenário para o conteúdo. Mas ainda há algo real nesse caos. A rebeldia pode ter mudado de formato, mas não perdeu o sentido. A necessidade de dizer “não” continua a mesma. E é esse “não” que mantém o grunge vivo, ainda que embalado por algoritmos.
O grunge sobrevive porque o mundo continua sendo um lugar difícil de habitar. As pessoas continuam tentando se reconhecer no espelho, entre o ruído e o silêncio. E talvez o grunge nunca tenha sido um estilo, nem um som, nem uma moda. Talvez sempre tenha sido só isso: a coragem de ser imperfeito.
O grunge nunca foi um nome só. Foi uma cidade inteira pulsando. Enquanto o Nirvana gritava a dor com ironia e melancolia, o Pearl Jam transformava o desencanto em consciência, em luta, em algo quase espiritual. O Soundgarden trouxe o peso, o eco metálico do desespero. O Alice in Chains mergulhou no vício e na dor mais íntima, como quem olhasse o abismo e ainda cantasse.
E havia também o Mudhoney, os Screaming Trees, todos sustentando aquele mesmo gesto: dizer a verdade mesmo que ela soasse feia. O grunge era uma colmeia de desajustados tentando entender o mundo,e, de alguma forma, traduzindo o que a juventude inteira sentia, mas não sabia dizer.
O grunge nunca foi um som congelado no tempo. Ele se moveu, se infiltrou em outros gêneros, se disfarçou em novas linguagens. Hoje, há um reflexo dele em vozes que talvez nunca tenham segurado um vinil. Olivia Rodrigo transforma o colapso emocional em refrão pop. Billie Eilish canta a vulnerabilidade com a mesma crueza que Cobain gritava a dor. Lana Del Rey transforma a melancolia em paisagem americana. Cada uma delas carrega, à sua maneira, o mesmo espírito de não se encaixar.
É curioso perceber como o grunge, que nasceu da recusa, virou base emocional de uma geração que se expõe o tempo todo. Na era da superexposição, o novo grunge não é o som das guitarras, mas o som da confissão. É o desabafo gravado no quarto, o cansaço em forma de poesia. A rebeldia agora é dizer que não está tudo bem, e fazer disso uma canção.
As bandas que surgem também trazem esse DNA. O Turnstile mistura hardcore e dança, e ainda soa urgente. O Wet Leg ri de si mesmo, mas com um certo vazio no fundo da voz. Os Arctic Monkeys envelheceram com dignidade, deixando o barulho dos primeiros discos para encontrar beleza no tédio e no desencanto. O grunge amadureceu com eles.
Essa nova geração não viveu Seattle, mas carrega o mesmo olhar cansado. Um olhar que já viu demais, mesmo tendo visto tudo por tela. A estética mudou, o som mudou, mas a essência é a mesma: tentar existir num mundo que insiste em vender versões prontas de tudo.
O grunge, afinal, nunca foi sobre rasgar a calça. Foi sobre rasgar o verniz. E enquanto houver gente tentando ser sincera dentro desse ruído digital, o grunge vai continuar respirando, em alguma frequência invisível, no meio do barulho das notificações.
O grunge sempre foi sobre o que sobra. Sobre o que resiste. E talvez essa seja a razão pela qual ele nunca saiu de moda, porque a verdade também nunca saiu de moda.















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