“Nebraska”: a alma nua de Bruce Springsteen em um disco corajoso e humano
- alexandre.tiago209
- há 20 horas
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“Nebraska” não é um álbum para ser ouvido com pressa. É uma experiência para quem está disposto a abrir o coração e deixar que as canções falem diretamente à alma

Atenção: Essa resenha do disco serve como complemento da resenha do filme “Springsteen: Salve-me do desconhecido.” Se não quiser spoiler, pode ler essa resenha e depois a do filme. Mas, não deixe de ouvir o disco e de assistir ao filme. Ambos são imperdíveis!
Em 30 de setembro de 1982, o mundo da música testemunhava algo raro: um artista no auge de sua fama e energia criativa escolher o silêncio e a vulnerabilidade como forma de expressão. Foi assim que nasceu “Nebraska”, o álbum mais intimista, sombrio e poético da carreira de Bruce Springsteen lançado até então. Ele é uma obra que redefiniu o conceito de folk rock mundial e transformou a dor pessoal em arte universal.
No início dos anos 1980, a música vivia uma era de excesso e experimentações. O rock abraçava sintetizadores, o pop dominava rádios e televisores com brilho e danças, o rap começava a invadir as estações e canais como a MTV, o jazz trazia smooth jazz e jazz rap, o reggae estava consolidando cada vez mais e o punk já deixava sua marca.
Enquanto o mundo celebrava o volume intenso e veloz, Bruce Springsteen preferiu mergulhar no oposto: o silêncio interior. Após o sucesso massivo do álbum duplo “The River” (1980), o cantor se viu imerso em um quadro depressivo, questionando o sentido da fama, o peso da solidão e o verdadeiro valor da vida.
Em seu quarto em Colts Neck, Nova Jersey, nos Estados Unidos, usando um simples gravador de quatro canais, Springsteen registrou as canções que compõem Nebraska. Ele pretendia que fossem apenas demos para um álbum com a E Street Band, mas as versões caseiras tinham uma força emocional tão crua, tão verdadeira, que decidiram lançá-las como estavam.
O resultado do disco é um folk rock acústico minimalista, carregado de histórias sobre solidão, culpa, crime, esperança e redenção, temas que ecoam como retratos de um mundo profundo e da alma humana em seus extremos.
A arte da capa do álbum é uma fotografia em preto e branco de 1975 feita por David Michael Kennedy, mostra uma estrada deserta sob um céu nublado, vista através do para-brisa de um carro. A imagem sintetiza o espírito do disco: o caminho incerto, a busca por sentido e a viagem interior de um homem tentando se encontrar no mundo e no seu próprio íntimo.
A faixa-título abre o álbum como uma confissão fria e cinematográfica. Inspirada no assassino Charles Starkweather, Springsteen canta com voz fantasmagórica sobre a banalidade do mal. É uma introdução gélida e brilhante ao universo moral do disco.
Em “Atlantic City”, o violão e a gaita se unem para narrar a decadência de um homem comum que busca recomeço em uma cidade de promessas quebradas. É um dos momentos mais belos do álbum — uma mistura entre tragédia, amor e sobrevivência. Um verdadeiro hit atemporal dentro de um álbum denso, complexo, emocionante e impactante que serviu como divisor de águas para Springsteen até então.
Com delicadeza, Springsteen recorda sua infância e o sonho inalcançável de ascensão social na emocionante faixa “Mansion on the Hill”. A melodia simples e o vocal contido reforçam o contraste entre a inocência e a desilusão.
“Johnny 99” é uma canção sobre desespero e violência social. Um operário perde o emprego e comete um crime. O ritmo quase country disfarça a tragédia de uma América que esquece de observar para as suas mazelas, suas vulnerabilidades e suas melancolias onde o ideal do “Sonho Americano” se apresenta como uma mera miragem utópica.
A faixa “Highway Patrolman” é um destaque especial. Ela é uma das letras mais poderosas da carreira de Springsteen. Conta a história de um policial dividido entre o dever e o amor fraterno. A melancolia da narrativa transforma o dilema moral em poesia pura.
Em “State Trooper” o desespero ganha forma em um grito contido. Apenas voz e violão, com uma tensão quase insuportável. É o retrato da ansiedade, da solidão e do medo na estrada como se a depressão batesse na porta onde é preciso saber emocionalmente como lidar com ela ao mesmo tempo que traz uma sonoridade arrebatadora.
Na faixa “Used Cars” Springsteen revisita memórias familiares, expondo a vergonha, o orgulho e a ternura de uma infância marcada pela pobreza em um país que possui grandes e variadas desigualdades. A simplicidade do arranjo amplifica a emoção.
“Open All Night” Um breve respiro no álbum. A canção, que é a mais rápida do álbum, com seus 2 minutos e 55 segundos, tem energia e ritmo frenético, com um vocal falado que se aproxima do rockabilly, mas sem abandonar o espírito solitário e emocionante que perpassa toda a obra.
“My Father’s House”, é uma das canções mais tristes e emocionantes do disco. Springsteen sonha em voltar à casa do pai, apenas para descobrir que já não pertence mais àquele lugar. Um hino que pede reconciliação diante da dor do afastamento e da dor do tempo perdido. Essa faixa ajudou o músico a se aproximar, na vida adulta, de seu pai.
O álbum se encerra com uma nota de esperança na deslumbrante faixa “Reason to Believe”. Mesmo em meio à desesperança, há sempre uma “razão para acreditar”. É a síntese do disco: a luz que surge apenas quando aceitamos a escuridão ou mesmo quando tudo parece estar ruim existe razões, sonhos e motivos para ter esperança na vida.
Ao gravar ” Nebraska”, Bruce Springsteen descobriu que o verdadeiro barulho não vem das guitarras, mas do coração. Cada ruído de fita, cada respiração e cada silêncio tornam o álbum mais humano, mais real.
Depois dele, a vida e a carreira dele nunca mais foram as mesmas. O disco funcionou como uma catarse — um autêntico e forte renascimento pessoal e artístico que o ajudou a enfrentar a depressão com o apoio da família e dos amigos, mas também, se ergueu como um grande e genial músico que precisava mostrar seu talento e sua versatilidade. Foi ali que o “The Boss” encontrou o equilíbrio entre o mito e o homem.
“Nebraska” não é um álbum para ser ouvido com pressa. É uma experiência para quem está disposto a abrir o coração e deixar que as canções falem diretamente à alma. Portanto, coloque os fones, feche os olhos e ouça, com mente aberta, com coração aberto e com a alma pronta para sentir.












