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Springsteen: Salve-me do Desconhecido, o silêncio depois do trovão

Nem todo grito precisa ser ouvido. Alguns só existem pra que a alma não desabe

Jeremy Allen White como Bruce Springsteen
Imagem: Divulgação

Antes de ser o The Boss, Bruce Springsteen foi só mais um garoto perdido em Freehold, Nova Jersey, tentando entender o que havia do outro lado do mundo — entender o barulho. O rock’n’roll, que nos anos 50 ainda carregava a rebeldia suja de Rock Around the Clock e o espírito indomável de uma juventude em combustão, foi a corda que ele agarrou pra escapar de casa, um refúgio contra o pai severo, o tédio da fábrica e o medo de não ser ninguém na vida.



Mas o que acontece quando a fuga dá certo? Quando o garoto que só queria uma guitarra vira o homem que carrega nos ombros o peso de uma geração? É isso que Springsteen: Salve-me do Desconhecido, novo filme de Scott Cooper, pergunta com uma honestidade que rasga o mito, o artista, a lenda, até sobrar apenas o homem por trás do seu legado.


Logo nas primeiras cenas, vemos Jeremy Allen White (em uma atuação hipnótica) recriar o Springsteen de The River: suado, elétrico, com o público gritando seu nome como se o mundo dependesse disso. Mas a glória dura pouco. Em minutos, o palco desaparece, e o que resta é o vazio. A câmera se fecha, o som se cala, e o filme começa, não sobre o ídolo, mas sobre o homem que se perdeu dentro da própria voz.


Baseado no livro Deliver Me from Nowhere, de Warren Zanes, o longa mergulha no processo de criação de Nebraska (1982) — o disco que transformou o silêncio em manifesto. Gravado de forma quase amadora, sozinho, num gravador TEAC de quatro canais, Nebraska é o retrato de um artista que, depois de conquistar tudo, descobre que o sucesso não cura ninguém. É um álbum sobre o vazio, sobre as vidas pequenas, os erros sem redenção, a solidão americana. Sobre o pai que bebe e o filho que tenta entender o porquê. Scott Cooper filma tudo como quem atravessa uma estrada sem destino. Há uma melancolia crepuscular em cada quadro, um tipo de beleza que vem do cansaço.


A fotografia é granulada, fria, feita de silêncios e respirações. O diretor não está interessado em criar um monumento, ele quer desmantelá-lo. Por isso, o filme não se rende aos clichês da cinebiografia musical: não há quedas espetaculares, nem renascimentos redentores. Há apenas um homem exausto, vagando por Nova Jersey, tentando se reconciliar com o garoto que foi e o pai que o formou pelo medo.


A relação entre Bruce e o pai, Dutch Springsteen (interpretado com brutalidade por Stephen Graham), é o coração do filme. Em flashbacks preto e branco, vemos o garoto sendo forçado a boxear no meio da noite, o pai mergulhado em fumaça e ressentimento. Essas memórias não são mero pano de fundo; são a raiz da dor que move o artista. Quando adulto, Bruce parece continuar lutando contra aquele mesmo homem, só que agora dentro de si.


Jeremy Allen White como Bruce Springsteen
Imagem: Divulgação

O filme ainda faz uma ponte simbólica com o cinema que inspirou o álbum. Em uma das cenas mais significativas, Bruce assiste a Badlands, de Terrence Malick, e se reconhece naquele jovem rebelde que mata o próprio pai. É o instante em que a arte volta a doer. E é a partir dessa dor que Nebraska nasce: um punhado de histórias sobre assassinos, operários e sonhadores que nunca chegaram a lugar algum. Canções que não querem salvar o mundo, só dar voz a quem não tem.


Jeremy Allen White carrega o papel com uma fragilidade impressionante. Há uma contenção quase física em sua atuação, como se ele tivesse medo de se mover demais e quebrar o personagem. O olhar dele diz mais que qualquer fala: o medo do silêncio, a vergonha da própria tristeza, a sensação de estar sempre devendo algo ao mundo. Sua entrega é tão honesta que faz o filme escapar da caricatura. Ele não imita Springsteen, ele o compreende.



Ao lado dele, Jeremy Strong faz de Jon Landau o contraponto perfeito, a presença serena que tenta impedir o artista de se afogar. A relação entre os dois é um dos grandes acertos do filme. Enquanto Landau simboliza o compromisso com a obra, Bruce encarna a ferida que essa arte deixa. Eles não são apenas manager e cantor, são duas metades de um mesmo dilema: a paixão e o abismo.


Cooper constrói o filme com o mesmo espírito que molda Nebraska: honestidade brutal, ausência de vaidade, fé na simplicidade. Ele não está interessado no espetáculo, está interessado no homem. E isso torna Salve-me do Desconhecido algo raro: um retrato sobre o que acontece quando a música termina.


A depressão é abordada sem romantismo, mas com compaixão. A dor está lá, mas nunca como vitrine. Springsteen é mostrado como alguém que tenta entender o próprio vazio, e que, no processo, transforma esse espaço vago na alma em som. Há coragem em se encarar sem disfarces. Em aceitar que nem todo dia é dia de cantar, e que, às vezes, o silêncio também pode ser o melhor ritmo para uma canção.


Depois de Nebraska, Bruce nunca mais foi o mesmo. Daquele quarto frio de gravações solitárias nasceu a fúria que o devolveria ao mundo, a de Born in the U.S.A.. É curioso como o silêncio às vezes prepara o grito. Nebraska foi um espelho rachado; Born in the U.S.A. é o reflexo inteiro, mas consciente das rachaduras. A energia que move Dancing in the Dark, I’m on Fire e a faixa-título não vem da celebração, e sim da sobrevivência. Cada refrão ali carrega o eco das fitas que giravam em 1982.



Em paralelo, Cooper insere uma das passagens mais poderosas: a gravação de Born in the U.S.A., feita com toda a fúria da E Street Band. A canção explode, mas agora em outro contexto, não mais como hino patriótico, e sim como grito de revolta. É o lembrete de que, mesmo quando o mundo o transforma em bandeira, Springsteen ainda está falando de dor, fracasso e humanidade.


E é esse contraste entre o épico e o íntimo que define o filme. Salve-me do Desconhecido não quer celebrar o sucesso; quer entendê-lo. Quer mostrar que a integridade artística tem um preço, e que às vezes esse preço é a própria sanidade. Como Nebraska, o filme se recusa a confortar. Ele não oferece respostas. Só nos deixa diante de um homem tentando sobreviver ao próprio eco.


No fim, a câmera se fixa em Bruce sozinho, sentado, observando as fitas do gravador girando em silêncio. É ali que tudo se resolve, ou talvez não. Porque, no fundo, Springsteen: Salve-me do Desconhecido é menos sobre música e mais sobre existência. Sobre um artista que descobre que o verdadeiro barulho vem de dentro.

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Trailer do filme:


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