Monster, de Hirokazu Kore-eda: quem é o verdadeiro monstro da sociedade moderna?
- Marcello Almeida

- 30 de out.
- 3 min de leitura
Há monstros que não vivem nas sombras, vivem dentro das instituições, das palavras ensaiadas e dos silêncios que evitamos encarar

Raramente um cineasta toca tão fundo na experiência humana quanto Hirokazu Kore-eda. Em Monster (Kaibutsu, 2023), ele volta a operar com seu bisturi moral: disseca a sociedade com a precisão de quem entende que a verdadeira ferida está no modo como tratamos a dor alheia como algo banal. O filme é uma narrativa suavemente devastadora sobre um sistema que reduz sentimentos a ruídos de fundo — e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre o que resta de inocência num mundo que já desistiu de escutar.
O roteiro, assinado por Yuji Sakamoto, constrói um quebra-cabeça emocional guiado por mistério e empatia. Acompanhamos Saori (Ando Sakura), mãe solteira que percebe mudanças inquietantes no comportamento do filho, Minato (Soya Kurokawa). A suspeita recai sobre o professor, mas o que parece um caso de abuso se revela uma teia de distorções e conveniências — uma engrenagem social que prefere repetir discursos prontos a encarar a complexidade do humano.
Kore-eda filma esse labirinto moral com o olhar de quem nunca acusa, apenas observa. Os enquadramentos fixos, as cores dessaturadas, o silêncio que pesa mais que as palavras — tudo trabalha para nos colocar dentro do desconforto. A atuação de Ando Sakura é uma explosão contida: sua revolta explode em gestos mínimos, em olhares que se perdem num vazio feito de descaso.

A narrativa transforma o cotidiano em uma arena onde o afeto e a violência coexistem. O filme dialoga com a doçura agridoce de Projeto Flórida e com o olhar humano de Pais e Filhos e Assunto de Família: Kore-eda mais uma vez fala sobre o invisível, as cicatrizes que o sistema não reconhece, mas que moldam o destino das crianças e dos pais que o habitam.
A estrutura do longa é um espetáculo de precisão. A trama se repete por três perspectivas distintas — a mãe, o filho e o professor —, e cada nova versão desmonta o julgamento anterior. O diretor corta as cenas antes do que já vimos, preenchendo o vazio com a imaginação do espectador. Assim, o tempo deixa de ser linear e se torna emocional, fluido, imperfeito, como a própria memória.
E sobre tudo isso paira o piano melancólico de Ryuichi Sakamoto, em seu último trabalho antes da morte. A música, dedicada ao compositor, não sublinha a emoção, ela a suspende no ar, transformando cada nota num sopro de despedida.
Mas não se engane: Monster não é um filme sobre culpados. É um filme sobre percepções, sobre como cada olhar distorce a realidade conforme suas próprias feridas. Quando as três versões se fundem, o resultado é menos uma resposta que um espelho: o verdadeiro monstro talvez seja a nossa pressa em julgar.
O cineasta não oferece redenção nem condena ninguém. Ele oferece um espelho. E, nele, vemos uma sociedade que cria monstros quando cala a verdade, quando silencia o amor, quando infantiliza o afeto.
Com atuações precisas, roteiro premiado em Cannes e direção que entende a alma como campo de batalha, Monster é uma das obras mais maduras e necessárias de Kore-eda. Um filme que não termina quando acabam os créditos, apenas muda de lugar, passando a habitar você.
Porque o monstro, afinal, é aquilo que nos olha de volta quando fingimos não ver.

Veja o trailer:
⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️















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